O segundo nascimento
Jean-Jacques Rousseau
Nascemos, por assim dizer, em duas etapas: uma para existir, e a outra para viver; uma para a espécie, e a outra para o sexo. Os que veem a mulher como um homem imperfeito, certamente estão enganados: mas a analogia exterior é para eles. Até a idade núbil, as crianças dos dois sexos nada têm na aparência que os distinga; o mesmo rosto, a mesma fisionomia, a mesma cor da pele, a mesma voz, tudo igual: as meninas são crianças, os meninos são crianças; o mesmo nome basta para criaturas tão semelhantes. Os machos em que se impede o desenvolvimento ulterior do sexo mantêm essa conformidade por toda a vida; são sempre crianças grandes, e as mulheres, sem perderem essa mesma conformidade, parecem, em muitos aspectos, jamais serem outra coisa.
Mas o homem, em geral, não foi feito para ficar sempre na infância. Dela sai no tempo prescrito pela natureza; e esse momento de crise, embora bastante curto, tem longas influências.
Assim como o rugir do mar antecede de longe a tempestade, essa revolução tempestuosa se anuncia pelo murmúrio das paixões nascentes; uma fermentação secreta avisa a aproximação do perigo. Uma mudança no humor, exaltações frequentes, uma contínua agitação de espírito, tornam a criança quase indisciplinável. Ela se torna surda à voz que a tornava dócil; é um leão que arde em febre; ela desconhece seu guia, não quer mais ser governada.
Aos sinais morais de um humor que se altera se associam mudanças sensíveis em sua aparência. Sua fisionomia se desenvolve e recebe as marcas de um caráter; a rara e suave penugem que cresce na parte inferior de suas faces assume cor morena e consistência. Sua voz entra muda, ou melhor, desaparece: o ser humano não é nem criança nem homem, e não pode assumir a tonalidade vocal de nenhum dos dois. Seus olhos, esses órgãos da alma, que até agora nada disseram, encontram uma linguagem e expressão; um fogo que nasce os anima, seus olhares mais vivos ainda guardam uma santa inocência, mas não têm mais sua primeira imbecilidade: já percebe que eles podem falar muito; começa a saber abaixá-los e enrubescer; torna-se sensível antes de saber o que sente; está inquieto sem razão para isso. Tudo isso pode ocorrer lentamente e ainda lhe deixar algum tempo a mais: mas se sua vivacidade se torna por demais impaciente, se seu arrebatamento se transforma em furor, se ele se irrita e se comove repentinamente, se derrama lágrimas sem motivo, se, ao se aproximar dos objetos que começam a ficar perigosos para ele, sua pulsação aumenta e seus olhos se inflamam, se a mão de uma mulher colocando-se sobre a sua o faz estremecer, se ele se perturba ou se intimida junto dela, Ulisses, ó sábio Ulisses, toma cuidado; os odres que fechavas com tanto zelo estão abertos; os ventos já se desencadearam; não deixes o leme sequer um instante, ou tudo estará perdido.
É aí que começa o segundo nascimento de que falei; é aí que o homem nasce verdadeiramente para a vida, e nada de humano é estranho para ele. Até aqui nossos cuidados foram apenas brincadeiras de criança; só agora assumem importância real. Essa época em que terminam as ações educativas ordinárias é aquela em que na verdade deve começar a nossa; mas, para expor com perfeição esse novo plano, voltemos mais acima ao estado das coisas que se referem a essa matéria.
Jean-Jacques Rousseau – L’Emile, livro V
Fonte: A causa dos adolescentes – Françoise Dolto, 2004 – Ideias & Letras