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A crença em Psicanálise: elementos para uma concepção de ato

Por: Christian Ingo Lenz Dunker 
Frequentemente o analista se depara em sua clínica com apresentações subjetivas fortemente marcadas pela crença. Independente do conteúdo específico dessas crenças, de natureza religiosa, moral ou política, já nas entrevistas preliminares verifica-se uma relativa tensão, por vezes explícita, acerca dos destinos da crença no decorrer do tratamento. A tensão se acirra quando o objeto que organiza essa crença está muito claramente delimitado, apresentando-se como um saber antagônico ou concorrente ao suposto na análise. 
Há fundamentalismos de vários tipos. O que caracteriza uma crença como fundamentalista não é seu conteúdo religioso, mas sim a forma como este engendra uma relação entre o sujeito e a verdade. Essa formulação é consoante com as observações de Lacan sobre a religião em A ciência e a Verdade (1), no qual afirma que, na religião, trata-se da verdade utilizada como causa pelo sujeito e que essa relação está marcada pela denegação (Verneinung). Ou seja, não se trata da verdade como causa material, como seria o caso na psicanálise, ou como causa eficiente, tal como se verifica na ciência (saber que), mas a verdade como causa final (em nome de), que, para tanto, tem de negar a posição do sujeito no próprio ato que o produz, daí denegação. 
Mas em nosso exemplo a noção de crença acabou por se ligar demasiadamente à que se verifica no universo da religião. Este não é um bom caminho. Freud acreditava firmemente na ciência e todo bom universitário sabe como sua prática depende da crença em um reconhecido inconsciente sistema de saber. Quanto à histeria, não há fato clínico mais antigo que sua crença nos ideais. Ao enfrentar o problema da crença, portanto, parece conveniente dissociá-lo do tema da religião. 
Voltemos ao início do tratamento. Sabe-se que é importante uma verificação preliminar da posição do sujeito. Isso pode ser feito de duas maneiras, mas uma delas, para a qual quero chamar a atenção, é justamente a forma assumida pela crença. ou seja, esse ponto de indignação em que o sujeito se engaja, recua, denega, diante de uma certeza cuja procedência é da ordem da crença. Isso é relevante para os próprios desdobramentos iniciais da transferência. Afinal, trata-se de uma aposta em que nem todos os elementos estão disponíveis, em que as garantias de sucesso, e mesmo os caminhos a percorrer, ainda são indiscerníveis. Para o leigo, engajar-se em uma análise não seria, virtualmente, um ato de fé? O que dizer das incidências da crença sobre o desejo do analista? 
Fantasia de cura e fantasia da doença foram conceitos usados durante algum tempo em psicanálise para designar essa espécie de aposta ou confiança exigida pelo engajamento no tratamento analítico em seus momentos preliminares. Winnicott desenvolveu a noção de esperança, no contexto de sua investigação sobre o ato anti-social, dando extensão à ideia de que tal ato pode ser uma tentativa de restabelecer a capacidade de encontrar ou de buscar o objeto. Em outros termos, um ato disruptivo em relação às coordenadas simbólicas do sujeito funcionaria como uma espécie de apelo para a reinstalação da esperança. Não poderíamos considerar a entrada em análise nos mesmos termos? Não é ela também um ato anti-social, no sentido em que põe em questão, e em suspensão, o laço social convencional? 
Ao longo do exame do caso Aimée, Lacan (3) se deparou com a importância clínica do ato em sua relação com a crença. O ataque à jovem atriz, que determinou a internação, se fez acompanhar da redução da angústia e da estabilização do delírio. Algo se resolveu em torno da crença delirante envolvendo a perda de seu filho, ou seja, algo se resolveu pela passagem ao ato. Ao agredir a figura que ocupava um lugar privilegiado em seu ideal, algo se dissolveu na natureza mesma desse ideal. Aqui, somos tentados a reconhecer uma espécie de eficácia do real, em analogia com a eficácia simbólica, na qual a cura se desenvolve e da qual depende em sua constituição.
Devemos mencionar ainda a presença crescente na clínica contemporânea de uma determinada configuração da crença. Não se trata do crente convicto em um sistema de significações, hesitante em perder suas referências. Nem mesmo do desesperançado ou cético, que procura a contraprova última da análise. Trata-se daquele que parece não ter nenhuma crença na qual se implique realmente.
Virtualmente, esse caso se associa ao cinismo, mas também à atitude burocrática daquele que espera fazer-se objeto de um saber e de um biopoder. Podemos, aliás, apresentar o cinismo como o melhor exemplo da posição do sujeito no lugar da verdade, mas em denegação. No fundo, o cinismo é uma espécie de religião de si, em que o sujeito afirma constantemente seu desejo ao negá-lo. 
Essas posições se definem pela relação com a crença e mais especificamente pela relação entre o ato e a crença. Nessas formas de apresentação clínica que vão da crença decidida ao cinismo, passando pela desesperança e pela aposta sem garantias, intui-se diferentes incidências na forma como o sujeito acredita, no entanto não se distingue muito bem a natureza mesma da crença. 
Lacan introduziu a análise lógica como caminho para entender o papel da certeza, da suspeita e do saber na estrutura do sujeito, no contexto da transferência e do laço social. Seria a lógica da crença dedutível desses desenvolvimentos? Ou, ao contrário, deveríamos admitir algo irredutível, presente na experiência intersubjetiva da crença, que exigisse formalizar ou, mais precisamente, sua forma lógica específica? 
Fenomenologia da crença 
O tratamento analítico põe em questão as crenças do sujeito. Isso não deriva de uma interpelação direta sobre a legitimidade ou o conteúdo da crença, mas de transformações no que seria o fundamento de toda crença possível para um sujeito, ou seja, sua procedência fantasmática. Isso estabelece uma distinção importante. Se temos o objetivo de esboçar a forma lógica da crença, não devemos partir da investigação acerca da natureza de seu objeto. O objeto da crença é o que há de mais variável, e deter-se sobre este nos desvia do verdadeiro problema, qual seja, a relação entre o sujeito e seu ato na experiência mediada pela crença. 
Crenças funcionam como garantias, submetem o crente a esquemas de ação e pensamento irrefletidos, aparentados à compulsão ou à sistematização do delírio. Daí a associação histórica entre o projeto da modernidade e um exame crítico e sistemático da crença, como se vê de Bacon a Kant. Na tradição anglo-saxônica, a noção de crença é uma noção primária. Para os herdeiros de Hume, ao contrário da linhagem cartesiana, é no conceito de crença que reside e se concentra mais fortemente a investigação sobre o sujeito. 
Talvez isso ajude a entender por que essa noção tem sido tão pouco explorada pela psicanálise. 
Foi Hegel, entretanto, quem mais radicalmente se estendeu sobre uma fenomenologia da crença. Trata-se, para ele, de consubstanciar a fé em nossa sociedade, em nossa vida, em nosso mundo, e não em atribuí-la a um mundo mais além (4). 
De que é feita a crença, se ela deve ser compreendida no quadro da racionalidade? Em alemão, há uma multiplicidade de termos e de conotações ligados ao acreditar. A expressão glauben(acreditar) contém: 1) a confiança em algo ou alguém, ou seja, uma suposição acerca do Outro; 2) a aceitação de algo como verdadeiro, vale dizer, um gesto subjeitvo que tenha a verdade por causa; e 3) uma referência ao que é acreditado, o nome do objeto. Vem daí o termo unglauben, absorvido por Lacan da tradição psiquiátrica germânica, para designar o estado de incerteza e suspensão que antecede a formação da crença delirante ou a passagem ao ato(5). Procede da mesma raiz o termo aberglauben, o qual designa a crença errática, desviante ou perversa, a crença falsa não no sentido de que seu conteúdo seja ilegítimo, mas na acepção de que sua convicção é subjetivamente mal realizada. 
Vem de Hegel, e recebe ênfase em Kojève (6), a ideia de que a realização da crença exige sua manifestação em ato. Vale dizer, a crença não deve ser considerada apenas como uma convicção interior ou como o conjunto dos preconceitos representados intimamente. Temos aqui uma quarta dimensão da crença, o ato de fé, que se deve acrescentar às três acepções anteriores para caracterizar melhor o campo de nosso problema. O ato torna a crença real ao mesmo tempo em que dissolve a representação de seu objeto. 
Badiou (7), seguindo essa tradição, tem se dedicado a demonstrar que o ato ético não é aquele que se reduz da fidelidade ao nome do objeto, nem o que reúne as garantias de uma verdade pré-constituída, mas sim aquele em descontinuidade com o conteúdo da crença que o move. Nesse sentido, poderíamos falar do ato como um evento que precipita uma crença antecipada, de modo análogo ao momento de concluir formalizado por Lacan, que precipita uma certeza antecipada pela absorção, em seu interior, da certeza perdida. 
Temos, portanto, quatro figuras que se desdobram na fenomenologia da crença, quatro sentidos que podemos discernir no uso ordinário dessa noção. dessas quatro acepções, três formam uma unidade relativamente estável, que poderia ser descrita da seguinte forma: a coisa em si (objeto referente da crença) se encontra negada pela sua nomeação. A nomeação induz o laço com o Outro como forma de restituição da essência mesma da crença na realização de sua verdade.
Finalmente, a aceitação simbólica desse laço como a própria verdade da crença induz uma nova nomeação, em acordo com estrutura do significante. Esse grupo possui estrutura metonímica homóloga à que encontramos no desejo, mas o circuito da crença assim constituído não prescreve, nem pode prescrever, uma possibilidade a mais, ou seja, a de que a própria crença se dissolva ao se afirmar em um ato que a ultrapassa. 
A crença e o ato 
Uma rápida inspeção sobre as fontes psicanalíticas acerca da crença sugere que não se trata de um tema dotado de grande autonomia. Pode-se encontrar referências importantes quando se pensa que a crença se liga indiretamente à noção de crença desejante, que seu conteúdo geralmente se articula ao pai e seus sucedâneos, bem como as formações de ideal dele decorrentes. Em última instância, a crença apareceria como um fenômeno fortemente ligado à sustentação narcísica do sujeito e ao encobrimento fantasmático da castração. Um fenômeno compósito capaz de combinar saber, sugestão e amor com uma certa passividade do sujeito. Essa via de entendimento é bastante precária, pois enfatiza demasiadamente o conteúdo da crença e acaba por reduzir a crença a um epifenômeno identificatório ou a uma forma impura do desejo. Permanece não resolvida, nesse caso, a análise lógico-discursiva da crença. Corre-se o risco adicional de produzir apenas uma hermenêutica da crença pela redução de seu núcleo semântico, o que sempre caracterizou o aporte metafísico do problema. 
Do ponto de vista da teoria dos discursos (8), tanto a crença fortemente amparada por um sistema restrito de significantes investidos de autoridade quanto o cinismo, em que nenhum significante parece implicar suficientemente o sujeito a ponto de que outro significante o represente, parecem convergir para o discurso de mestre. Neste caso, vemos claramente a presença de um significante mestre, assemântico e insensato ocupar o lugar do agente. Deus,, o pai ou qualquer outra fonte inspiradora de autoridade inquestionável cumpre bem essa função. Estamos aqui no registro do nome do objeto, que pode ter seu conteúdo deslocado com a permanência da mesma forma lógica. Além disso, encontramos o ato caracterizado pelo fato de ser “em nome de”, cuja enunciação é sempre superegóica. Nesse nível não há simetria intersubjetiva. O fato de acreditar não implica que o Outro acredite. Muito se argumentou de que a verdadeira crença é aquela que não exige nada em troca, nem mesmo reconhecimento. O ato paradigmático em jogo nesse caso é o ato de filiação, porém a verdade da neurose ensina a precariedade dessa função da crença. Em nome de uma crença é possível, muito facilmente, extrapolar seu sentido, e é esta mesma a regra. Em nome da paz a guerra, em nome da justiça a iniquidade, e assim por diante. 
As versões do pai, todavia, não devem ser confundidas com a suposição de saber que é efeito do reconhecimento subjetivo desse deslocamento. Passamos aqui para o regime do saber, ou seja, o saber no lugar do Outro é o que faz com que associemos o crente à figura do escravo: a crença se torna reflexiva, crer é crer na crença do Outro. Inacessível como tal, a crença na crença do Outro exige um ato de suposição para se tornar efetiva. Conforme o provérbio espanhol: “No creo en brujas pero que las hay, las hay”. Ou seja, o fato de eu não acreditar não importa, pois se o Outro acredita já é suficiente. Que o Outro acredite, contudo é uma suposição inverificável, a não ser contando com a própria crença no Outro. É por isso que o neurótico, no fundo, não sabe no que acredita (pela ação do recalcamento), mas também não acredita no que sabe (efeito da estrutura de sua divisão como sujeito). A partir disso, é possível pensar a demanda de ter a crença reconhecida e de fazer reconhecer sua crença ao Outro. O ato de suposição é coextensivo a esse segundo momento da crença. Suposição que reconhece uma descontinuidade, uma barra intransponível, entre a crença e o nome que a representa na forma de um saber. 
O que se produz sob a barra dessa suposição de saber é o objeto. O corpo de Cristo, por exemplo, cuja materialização enigmática se precipita do ritual religioso. Destaca-se nesse ponto o caráter performativo da crença e seu efeito de gozo. A crença não pressupõe apenas a adesão a princípios, mas a prática e a confirmação tautológica dos mesmos. Um ponto de crença é também um ponto de gozo. Nele, verifica-se a estranha satisfação de reencontrar o já sabido. Dizemos que a crença é performativa porque ela transforma quem a enuncia em objeto da própria enunciação. Em outras palavras, a crença deve ser entendida como um circuito, como uma prática auto-realizadora. Todavia é a ilusão fantasmática que nos faz crer que se trata do reencontro de algo que já estava lá e não da produção da crença ao longo de seu próprio processo. Algo similar ao que se passa, por exemplo, no laço social paranóico em que o sujeito acredita firmemente na existência de um objeto que o persegue. Ao tomar medidas defensivas e reativas contra isso, acaba por produzir de fato a perseguição antes idealizada. Não é porque se é paranóico que os outros não o perseguiam, mas é justamente por ser fantasmaticamente paranóico que se produz no real a própria perseguição. 
Resta então, no lugar da verdade, o sujeito que é afinal a única garantia do sistema de crença assim formado. O último passo na dialética da crença é o reconhecimento de que a negatividade de seu objeto é constitutiva da própria negatividade do sujeito. Não é “em nome de” , nem por “saber que” ou para “gozar com” que a crença se realiza (no sentido de se tornar real), mas porque, no fim, a crença é a colocação em ato do real do sujeito. O impossível de acreditar que afinal corresponde à efetividade do sujeito. É exatamente essa situação a descrita por Lacan (9) como “escolha forçada”. A escolha forçada tematiza diretamente o paradoxo da crença. Se creio na liberdade, não posso ser forçado a uma escolha, no entanto só poderei realizar tal liberdade submetendo-me a esse forçamento. Não é, portanto, uma escolha exclusiva, mas também não se trata de um forçamento exclusivo. Remeto o leitor ao trabalho de Zupancic (10) que demonstra a congruência lógica entre a escolha forçada e o ato analítico na qual nos apoiamos aqui. Nesse ponto, encontramos toda a radicalidade da noção lacaniana de ato como possibilidade de subversão dos termos em que a questão é posta ao sujeito. Possibilidade de separar-se desses termos introduzindo algo de original. 
Temos assim quatro tempos da posição do sujeito em relação à constituição da crença na sua relação com o ato: 1) a crença que se expressa “em nome de”, como sustentação e garantia para os atos do sujeito. Nessa condição, tais atos são, em última instância, atos simbólicos do Outro. O sujeito ativamente realiza sua passividade diante desse Outro; 2) a crença que se expressa em “saber que”, como mediação e reconhecimento para os atos do sujeito. Nessa condição, o ato permanece em suspensão ou espera. O sujeito, passivamente, realiza sua atividade como aitividade de suposição; 3) a crença que se expressa em “gozar com”, como instrumento e artifício para os atos do sujeito. Nessa condição, contudo, tais atos apagam o sujeito, posto que este se faz objeto para o gozo; e 4) a crença se expressa em uma “escolha forçada”, em que o sujeito deve separar-se da crença para de fato realizá-la. É esse caso o que melhor ilustra a noção de travessia da fantasia em sua variante de travessia da crença fantasmática, a qual, ao ser reconhecida apenas como uma crença, mostra a contingência da escolha de gozo e a arbitrariedade das coordenadas simbólicas do desejo. 
Interatividade 
Um autor que tem se empenhado em esclarecer a afinidade entre a crença e o ato no quadro do pensamento lacaniano é Slavoj Zizek (11). Para ele, a crença é um fenômeno inerente ao caráter estrutural do deslocamento. Toda crença é crença deslocada porque é, antes de tudo, crença no Outro e na articulação significante que o define. crer é crer na crença do Outro. Nesse sentido, o sujeito suposto saber seria apenas um caso específico de uma condição mais genérica e constitutiva: o sujeito suposto crer. Saber e crer não são, apesar disso, implicações subjetivas simétricas. A crença é reflexiva, o saber não. Posso crer através dos outros, mas não posso saber através dos outros. Aqui há, justamente, o aspecto performativo, acentuado anteriormente em conexão com o acreditar, e que não está presente no saber. Posso saber mas agir como se não soubesse, mas não posso crer e agir como se não acreditasse. Ao agir como se não acreditasse, simplesmente não estou acreditando. Por exemplo, passamos pelo ritual do Papai Noel porque nossas crianças supostamente acreditam nele. Como não queremos desapontá-las, acreditamos através delas. Mas ao acreditar através delas, estamos acreditando, e isso claramente se dissocia de nosso juízo mais íntimo sobre a existência ou não de Papai Noel. Sabemos disso, mas agimos como se não soubéssemos, assim mesmo acreditamos. 
O objeto da crença não precisa existir para que ela funcione, basta que algum outro acredite. Inversamente, o sujeito que crê não precisa existir para a crença funcionar, basta pressupô-lo, de forma impessoal ou denegatória, para que a crença seja eficaz. Ela o será, portanto, sempre baseada no perpétuo deslocamento significante. Zizek propõe chamar interatividade essa propriedade reflexiva do significante no engendramento da crença, o que representa muito bem a relação entre as duas primeiras posições que isolamos anteriormente. Em nome da tradição (e do nosso próprio narcisismo paterno) fazemos nossas crianças saberem tudo sobre Papai Noel. Tudo o que mais elas puderem supor. Já que elas sabem, é preciso então, em nomedas próprias crianças, realizar o ritual natalino. A narrativa prossegue até o ponto em que elas sabem que nós sabemos que elas sabem, mas então são elas que, não querendo decepcionar a ilusão fantasmática dos pais, agem como se não soubessem. Ou seja, acreditam, assim mesmo, exatamente como nós, e essa é a interatividade da crença. 
O saber, assim como o amor, exige provas. E é como prova de amor que a transferência se organiza imaginariamente . A crença, ao contrário, é refratária às provas. Ela depende dessa região intermediária entre positivamente verdadeiro e falso.
Uma verdade que não pode ser toda dita. A prova transforma a crença em saber, apagando o fenômeno. Nada mais falso que interpretar a interpelação bíblica de Tomé como uma exigência de provas que fundamentassem sua crença. O objeto da crença não pode ser visto (assim como o objeto a), e sua demonstração argumentativa corrompe o princípio da interatividade. 
Mas a crença é crença no Outro porque é do Outro que ela procede originariamente. Como dizia Pascal, ajoelhe e reze, a partir disso a fé virá por si mesma. É porque o ritual significante se impõe desde o Outro que a crença se forma, e não o contrário. Isso se verifica facilmente pela eficácia das antigas carpideiras e também no execrável, porém eficaz, riso de auditório. Não precisamos rir da piada, basta acreditarmos que alguém está rindo por nós. Zizek (12) chama a atenção apara uma corrupção do princípio da interatividade da crença, quando a examinamos sob o ponto de vista do gozo. Eu não preciso gozar, o outro goza por mim; quando o outro goza por mim, gozo através dele. 
É preciso distinguir agora as duas formas como essa operação pode se realizar. Há, por assim dizer, duas maneiras como outro faz algo por nós, em vez de nós, em nome de nós. No primeiro caso, o sujeito diz eu não acredito e a enunciação que corresponde à verdade desse enunciado é eu acredito através do Outro. É o caso de Papai Noel. No segundo, o sujeito diz eu acredito, mas o objeto da crença é o próprio gozo. Eu acredito e o ato de acreditar se liga pragmaticamente ao gozo. Acreditar e gozar se torna sinônimos. As grandes experiências de conversão, a graça e a iluminação atestam o fenômeno de forma pontual. O amor à primeira vista é a outra face desse mesmo fenômeno, mas a verdade no plano da enunciação diz: não é você que goza, mas o Outro.Você realmente acredita que gostou, mas na verdade alguém gostou por você, situação que Zizek chama de interpassividade. 
Interpassividade 
Esse segundo tipo combinatório da crença depende do que Zizek chamou de sujeito interpassivo. A noção de interpassividade se opões à de interatividade ou interação. Creio que estou interagindo com o outro, portanto em posição ativa, quando na verdade estou ativamente mantendo minha passividade diante do Outro. Ora, é exatamente essa posição subjetiva que se verifica o fantasma, ou seja, nem atividade, como crê o obsessivo, nem passividade como crê a histérica, mas interpassividade. O obsessivo se previne frenética e ativamente para que aquilo não aconteça, mas essa atividade que eleacredita corresponder a seu gozo é, na verdade, a passividade da crença fantasmática:não é você quem goza, mas o Outro no seu lugar. A histeria, ao contrário, mantém laboriosa e ativamente o desejo do Outro. Essa atividade cultiva a crença de que a falta no Outro corresponde ao seu gozo na posição passiva. Também neste caso a verdade da crença fantasmática é: não é você quem goza, mas o Outro no seu lugar. 
Daí se depreende que a solução do fantasma passe por uma destituição subjetiva, ou seja, passa de o Outro goza em vez de mim para faço-me de objeto para um gozo que não pode ser do Outro. Vê-se assim, que a interpassividade corresponde ao deslocamento, entendido não apenas como deslizamento significante, mas também como transposição ao contrário da pulsão. A substituição da passividade pela atividade é anterior e condicionante da substituição de um significante por outro. Podemos dizer então que a relação do sujeito com o significante é interativa e que a relação do sujeito com o objeto é interpassiva. Um significante representa um sujeito para outro significante, mas um objeto não representa um sujeito para outro objeto. Um objeto representa fantasmaticamente um sujeito para o Outro. É por crer na crença do Outro que o sujeito faz esse Outro existir em sua consistência. Aqui vale a fórmula “se fazer de”, que caracteriza a gramática do fantasma na ação do semblante. Podemos acrescentar a pergunta: aquele que se faz de sem saber que se faz de está de fato representando? Seria mais correto dizer, pelo que vimos até aqui, que o sujeito nessa posição está simplesmente a acreditar, sem saber no que acredita. 
Agora, podemos esboçar a forma lógica da crença envolvendo o seguinte grupo de relações:  
Em nome de —-> Saber que (interatividade) 
Ato <—- Gozar com / Se fazer de (interpassividade 13) 
A clínica da crença 
Voltemos ao problema representado pela apresentação subjetiva fortemente marcada pela adesão a um sistema de crenças. Sabemos que uma atitude indiferente à natureza legítima ou ilegítima dessa crença é genericamente favorável ao início do tratamento. 
Ocorre que, em alguns casos, o analista logo se vê diante de uma rotação discursiva refratária ao prosseguimento da análise. Isso se dá porque a histerização do discurso, ou seja, sinteticamente, a colocação do sujeito na posição de agente, é imediatamente revertida em interpassividade, que visa restabelecer o circuito ternário da crença. A análise pode caminhar bem no plano da interatividade significante, mas a abertura do inconsciente é rapidamente absorvida no fechamento da crença, ou seja, é lida como uma outra crença concorrente, a crença no inconsciente. 
Em outros casos, percebe-se que a relação com o sistema de crenças muda não por uma ação direta sobre ele, mas como efeito do deslocamento significante. Acontecem efeitos benéficos no plano da redução do gozo, os quais podem ser atribuídos à gradual ação separadora do saber em relação à crença, pela ação da transferência. Por fim, a implicação subjetiva, que desta vez não se confunde com o convite à atividade, permite uma subjetivação da crença. Não é possível creditar a crença ao Outro, é preciso assumi-la como uma decisão (a aceitação subjetiva), o que na verdade ela não é. Isso costuma levar a análise a uma redução do sistema de crenças que forma numa posição mitigada, relativamente isolável e protegida ao longo do tratamento. 
No caso da crença clínica no eu ideal, a análise da interpassividade do sujeito, mostrará que o fato de que ele se declare não crente é francamente uma denegação de sua crença fundamental no gozo através do Outro. É comum na progressão favorável desses casos que a crença na análise, e mais especificamente no analista, torne-se imediatamente um problema. 
(1)Lacan. Escritos, (1998) 
(2)Winnicott. Privação e Delinquência (1984/1999) 
(3)Lacan. Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade (1932/1988) 
(4)Hegel. A fenomenologia do espírito, parte II (1807/1998) 
(5)Lacan. O seminário-livro 3: As psicoses (1955-1956),(1989) 
(6)Kojève. Introduçãoà leitura de Hegel (2002) 
(7)Badiou. Para uma nova teoria do sujeito (1996) 
(8)Lacan. O seminário- livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970),(1999). 
(9)Lacan. O seminário- livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1988) 
(10)Zupancic. Ethics of the real (2000) 
(11)Zizek. The interpassive subject (http://lacan.com/frameziz.htm) 
(12)Zizek. On belief (2001) 
(13) A interatividade se encontra no primeiro patamar em leitura horizontal, e a interpassividade corresponde à relação entre o primeiro patamar e o segundo em leitura vertical. 
Referências Bibliográficas 
Badiou, Alain. Para uma nova teoria do sujeito (1996). Rio ed Janeiro: Relume-Dumará. 
Hegel, G.W. A fenomenologia do espírito, parte II (1807). Petrópolis: Vozes, 1998. 
Kojève, A. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto, 2002. 
Lacan, Jacques. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. (1932). Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.Lacan, Jacques. O seminário – livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. 
Lacan, Jacques. O seminário – livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988 
Lacan, Jacques. A ciência e a verdade (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 
Lacan, Jacques. O seminário – lovro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 
Winnicott, Donald W. Privação e delinquência (1984). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 
Zizek, Slavoj. On belief. London: Routledge, 2001 
Zizek, Slavoj. The interpassive subject. Disponível em: http://lacan.com/frameziz.htm. Acesso em: novembro/2003 
Zupancic, R. Ethics of the real. London: Verso, 2000. 
Este texto foi extraído da revista Stylus (Rio de Janeiro, abril de 2004, número 8.)

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