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A Era do Prazer – Entrevista Charles Melman

Entrevista com Charles Melman, Revista Isto É, número 1824, 22/09/2004 por Celina Côrtes 

Novo destaque da psicanálise, Charles Melman afirma que os indivíduos nunca pensaram tão pouco como hoje e que as ideologias acabaram. 
O psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) e o francês Jacques Lacan (1901-1980) provocaram uma revolução ao desvendar com mais profundidade o funcionamento da mente. Embora suas teorias continuem vigorando, o homem que eles analisaram tem diferenças fundamentais em relação ao cidadão do século XXI. Com o cuidado de não minimizar o conhecimento de seus antecessores, o psicanalista francês Charles Melman, 73 anos, está causando uma nova revolução na psicanálise com o livro O homem sem gravidade, gozar a qualquer preço (Ed. Companhia de Freud). Melman faz um retrato de corpo inteiro do novo homem, que põe o prazer à frente do saber e prioriza a estética em detrimento da ética. “O excesso se tornou norma”, diagnostica, com sua voz calma e pausada, à beira da piscina do Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Melman esteve na cidade participando de um seminário sobre os laços conjugais na modernidade. O evento, com o título Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é sintoma do homem?, foi promovido pela Associação Psicanalítica Tempo Freudiano. 
Apesar de ser um dos profissionais mais badalados do momento na psicanálise, seu tom nada tem de arrogante. Melman foi um dos principais colaboradores de Lacan, que o escolheu para dirigir a Escola Freudiana de Paris. Ele fundou a Associação Freudiana Internacional, que mais tarde passou a se chamar Associação Lacaniana Internacional. O psicanalista evita injetar julgamento nas conclusões alinhavadas em seu livro. São constatações sobre a vida moderna, na qual ele vê aspectos positivos, entre os quais a “formidável liberdade”, e negativos, como o processo de substituição das neuroses pela depressão. O que ele batiza como “nova economia psíquica”teria, entre outras coisas, transformado o sexo em uma mercadoria como outra qualquer. Até a morte perde sua sacralidade, segundo Melman. Para ele, a exposição sobre arte anatômica – que está correndo o mundo desde 1997 e exibindo cadáveres plastificados e suas entranhas – seria um forte indício dessa tendência. “A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das tripas, o interior do interior”, analisa. 
Isto É – O que é a Nova Economia Psíquica? 
Charles Melman – Hoje a saúde mental já não se origina mais da harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não há limites. Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a pátria e os ideais. Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. A partir do momento em que há no sujeito um tipo de desejo, ele se torna legítimo, e é legítimo esse indivíduo encontrar sua satisfação. A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma. 
I.E – Quais são os aspectos positivos e negativos disso? 
Melman – Cada um pode satisfazer publicamente suas paixões contando com o reconhecimento social, incluindo as mudanças de sexo. Há uma formidável liberdade, mas ela é estéril para o pensamento. Nunca se pensou tão pouco. O trabalho do pensamento é comandado por aquilo que produz obstáculo. Mas nada mais representa obstáculo, não sabemos o que há para pensar. O sujeito não [e mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referencias, o indivíduo se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa. Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma freqüência de estados depressivos diversos. 
I.E – Como o Sr. descreveria o indivíduo nessa economia psíquica? 
Melman – A imprensa e a mídia substituíram as fontes de sabedoria de outrora. Daí resulta um indivíduo manipulável e manipulado. Suas escolhas, opções e comportamento de consumidor é que organizam seu mundo. É uma forma de identificação que, me parece, não foi observada por Freud nem por Lacan. 
I.E – De que forma se dá o rompimento do modelo gerador de neuroses desvendado por Freud – no qual a relação com o mundo é marcada pela ausência do objeto querido – e que conseqüências tem esse rompimento? 
Melman – Com o desaparecimento do limite, não há mais o sujeito do inconsciente de Freud, que se expressava por sonhos, lapsos e atos falhos. Se houve uma descoberta feita por Freud é a de que nossa relação com o mundo não se dá por intermédio de um objeto, mas pela falta dele. No complexo de Édipo o objeto em falta é a própria mãe. A pessoa precisava passar por essa perda para estabelecer suas identificações sexuais. Hoje, para se ter acesso à satisfação não é mais preciso passar pela perda, que era uma fonte de neuroses. Do conjunto de pessoas que se consultam nos serviços hospitalares, 15% são casos de depressão. Há, portanto, a emergência de um novo sintoma, a depressão, no lugar das neuroses de defesa. 
I.E – O prazer sexual estaria se banalizando? 
Melman – O sexo realmente se banalizou. É encarado como uma necessidade, já que caiu por terra o limite que o tornava sagrado. Quando se fala em liberação sexual, não se fala mais no desejo. O homem contemporâneo trata o desejo sexual, de certa forma, como simples atividade corporal. A nova economia psíquica faz do sexo uma mercadoria entre outras. 
I.E – De que forma a exposição sobre arte anatômica, apresentada desde 1997 e ainda correndo o mundo, influenciou suas idéias? 
Melman – Com essa exposição a morte deixou de ser sagrada. Passou a ser mais um bem de consumo. Os cadáveres, protegidos da putrefação por modernas técnicas, viram corpos plastificados expostos à visão. Algumas vezes com o interior do cérebro, do sistema digestivo e até um feto dentro do útero à mostra. Milhares de pessoas estão fazendo filas nos museus para ver a exposição. Estamos ultrapassando os limites. Até então, uma das características da espécie humana era destinar seus mortos à sepultura, com o respeito que costuma cercar a morte. A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das tripas, o interior do interior. 
I.E – Então não há mais nada que choque as pessoas? 
Melman – Há sim, a pedofilia. Mas, de qualquer forma, os programas de televisão e a imprensa mostram os casos mais escabrosos em detalhes e todos se interessam por esse tipo de noticiário, como se fossem os fatos da atualidade. As jovens que foram violadas acabam sendo exibidas como mais um objeto. 
I.E – Por que a figura paterna foi esvaziada, assim como o lugar da autoridade de uma maneira geral? 
Melman – O problema do pai, hoje, é que não há mais autoridade ou a função de referência. Sua figura se tornou anacrônica. Nas famílias, o pai e a mãe passam a ter as mesmas atribuições, o que dificulta a identificação dos filos com a figura masculina e com a feminina. 
I.E – Por que o Sr. diz que a vida política está desértica? 
Melman – Os jovens sempre foram revoltados com a injustiça social. Hoje, no entanto, eles só têm uma vontade: participar da vida social. Eles não protestam contra as injustiças. Querem apenas encontrar um meio de gozar logo os prazeres da vida social. Por outro lado, muitos cidadãos podem constatar que falta potência do poder político diante das forças econômicas, verdadeiras ‘mestres’ da situação. Então por que se engajar na vida política se ela é importante para corrigir as desigualdades e dificuldades da vida social? Hoje, acabaram as ideologias, as palavras de ordem e até mesmo as utopias. Os indivíduos preferem eleger pessoas que souberam gerir bem seus negócios. Não há mais confiança nos políticos. 
I.E – Por que tanta desconfiança? 
Melman – Porque nessa sociedade permissiva todas as figuras de autoridade parecem abusivas, é como se não ocupassem mais o seu lugar. É a mesma coisa com o pai na família. 
I.E – Quais são as características desse homem “sem gravidade”? 
Melman – Faltam ao homem de hoje qualidades que lhe seriam singulares. Temos mais a impressão de uma generalização dos traços que se tornaram comuns a todos os cidadãos. É como se eles tivessem mais ou menos as mesmas qualidades e defeitos. 
I.E – Isso pode ser um dos resultados da globalização? 
Melman – Sim. Fui há alguns dias ao Chile, no deserto de São Pedro de Atacama. Lá há um oásis com três a quatro mil pessoas, a maioria de jovens originados do povo inca, que habitava a região. Pelo que se interessam esses jovens de origem indígena no fundo do deserto? Pelos mesmos objetos de consumo oferecidos em Xangai, no Rio de Janeiro e em Paris. O que vale sua cultura de origem em relação a esse culto de objetos? Nada. 
I.E – Como a estética está ocupando o lugar da ética? 
Melman – O número de jovens que querem fazer teatro é inacreditável, mesmo os que já têm diplomas profissionais importantes. Por que? A única maneira hoje de ser aceitos pelos outros é estar em cena, captar os olhares, agradar, ser sedutor, ou seja, a imagem de cada um é que se tornou decisiva para ser aceita e, eventualmente, para ganhar dinheiro. Esses progressos da estética são um ponto positivo na nossa cultura. Por que não? É agradável ver jovens esteticamente cuidados. Mas se torna um problema quando é o principal meio que eles têm para serem admitidos e reconhecidos. 
I.E – O Sr. diz que a corrida à juventude perpétua gera um sentimento de desamparo, de falta de referências, ansiedade e cansaço. Pode explicar melhor? 
Melman – Nossa nova economia psíquica é muito jovem. As gerações precedentes estão desorientadas pelos novos problemas. Ser jovem é dar testemunho de que se participa dessa nova moral e inteligência. Mas, em geral, é bastante difícil se manter nessa posição. Há, portanto, ansiedade no indivíduo pelo medo de não ser mais reconhecido e apreciado. Antigamente as pessoas idosas eram respeitadas por sua sabedoria. Hoje, são rejeitadas pela velhice dos valores morais, que já não interessam. 
I.E – Quais as influências da publicidade sobre esse novo indivíduo? 
Melman – Os publicitários são muito inteligentes. Precisam transformar o objeto de necessidade em objeto de desejo. Sabem que podemos nos desinteressar do objeto de necessidade rapidamente, mas o desejo é permanente. Quer dizer, quando a publicidade quer vender um iogurte é preciso apresentá-lo como um produto estranho, enigmático. A publicidade tem um papel pedagógico, que vai no sentido da liberalização dos costumes. E as crianças são muito sensíveis às suas mensagens. 
I.E – O Sr. diz que a mídia também tem um papel importante nesse contexto. 
Melman – Considerável. Como não temos mais grandes textos de referencia, a mídia se tornou nosso meio para pensar. Ainda assim, a parte informativa dos jornais diminuiu muito em relação às simples notícias da atualidade. Só interessa ao leitor o que o toca, diretamente ou por ligação afetiva. 
I.E – A nova psique, segundo o Sr. diz, está criando também um novo fenômeno lingüístico. Estaria surgindo uma nova língua? 
Os jovem se comunicam por torpedos (mensagens eletrônicas via celular) com uma nova escrita, que tende ao desaparecimento das vogais. O privilégio é das consoantes, com uma ortografia completamente livre, fundada na idéia de que o receptor é incapaz de decifrar minha escrita. É uma escrita que inventa cada frase em particular. Acredito que teremos em breve romances escritos por essa nova linguagem. Os efeitos disso ainda não são previsíveis, mas trata-se de um processo divertido e interessante. 
Fonte: http://psicologiaejuventude.blogspot.com.br/2011/08/charles-melman-era-do-prazer.html 

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