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A outra cena – por Amos Oz

Fonte: Blog Litura-terra

Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: “O Levante é cheio de micróbios”. 
(…) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer. 
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho. 
De fato, teve um infarto. 
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, “O Levante é cheio de micróbios”, aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores. 
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios. 
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (…). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois? 
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou – nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios” 
Fonte: http://litura-terra.blogspot.com.br/

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