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Arte e ciência na psicanálise

Marco Antônio Coutinho Jorge 
“Lacan conjuga em seu ensino duas vertentes aparentemente opostas, mas que se complementam: a arte e a ciência, ou – poderíamos dizer com ele – a poesia e o matema. 
Seus textos e seminários são escritos em falas que sabem lidar com as palavras, explorando todos os seus elementos constitutivos: os fonemas (materialidade sonora), a letra (recurso da escrita) e a multiplicidade de sentidos (semântica). Ele adora recorrer à referência etimológica: andava sempre com um exemplar do clássico dicionário etimológico da língua francesa Bloch et von Wartburg embaixo do braço, vivia exortando os analistas a fazerem o mesmo e ainda os aconselhava a fazer palavras cruzadas. Seu discurso esgarça os limites da sintaxe, explorando os registros linguísticos da escrita e da fala para produzir equívocos. Como Freud, aliás, ele insiste em que o analista deve ser letrado e deve saber usar os recursos de estilo. Dentre eles destacam-se, tanto em sua escrita quanto em sua fala, a ironia, a antítese, o jogo de palavras, a criação de homofonias e o rebuscamento. Enfim, seu estilo é barroco, assim como o de Freud é clássico. Curiosamente, os charutos de ambos são emblemas desses estilos: o de Freud tão grande e alinhado e o de Lacan todo entortado! De fato, Lacan considera que seus escritos não se destinam a uma simples leitura, mas, como as formações do inconsciente, devem ser decifrados.
 Em 1930, Freud recebe da cidade de Frankfurt o cobiçado Prêmio Goethe de Literatura pelo conjunto de sua obra. Seu brevíssimo artigo de 1916, intitulado “Sobre a transitoriedade”, é unanimemente considerado um ensaio poético. E os textos de Lacan são atualmente cada vez mais estudados nos departamentos de literatura das universidades. 
É preciso chamar atenção para o fato de que a literatura exerce um papel preponderante na constituição da psicanálise, na medida em que atravessa toda a obra de Freud: de Sófocles a Shakespeare, que ele denomina de “o grande psicólogo”. Freud aprende com os romancistas e os poetas, retirando deles continuamente ensinamentos. Ele dizia inclusive que não havia nada que conseguisse formular cientificamente que já não houvesse sido abordado pelos escritores. Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, ele abre um espaço significativo para a literatura, propondo uma ligação mais estreita, “no sentido de uma universitas literarum”, entre a ciência e as artes. 
Lacan toma a proposta freudiana ao pé da letra. Ele não só sublinha frequentemente a percepção de um saber na criação literária, mas também afirma que os poetas sempre dizem as coisas na frente dos outros. Com Lacan, os psicanalistas passam a ser exigidos a se reincluir no mundo do saber, do qual haviam se afastado a partir do momento em que os pós-freudianos reduziram a psicanálise a uma técnica de adaptação ligada à medicina. 
A erudição de Lacan, assim como a de Freud, é impressionante. Sem dúvida, essa erudição é efeito de um desejo de saber sobre as questões cruciais do homem. A contribuição de Lacan é efetiva na medida em que articula o saber psicanalítico com as disciplinas contemporâneas a que Freud não tivera acesso, como a linguística e a antropologia. Além disso, sua paixão pela filosofia e seu interesse pela matemática e pela lógica o levam a produzir constantemente uma articulação desses campos do saber com a psicanálise. 
Seguindo os passos de Freud, Lacan também almeja conquistar o status de ciência para a psicanálise. Mas essa busca de cientificidade não é incompatível com a arte do bem dizer. A frase de Buffon “O estilo é o homem” inicia o texto de abertura dos Escritos, onde duas questões são privilegiadas: “o estilo que seu endereçamento impõe” e a convocação do leitor para dar “algo de si”. 
Em relação à cientificidade da psicanálise, a contribuição mais importante de Lacan é a construção gradual de matemas. Para isso, ele recorre às fórmulas matemáticas, já que estas são a via pela qual as ciências operam sobre o real. Como é possível mandar um homem para a Lua? Através de fórmulas matemáticas que conseguem arrancar dele as leis que ali vigoram. Nesse sentido, toda ciência é uma tentativa de simbolizar o real, ou melhor, como dizia Lacan, uma pontinha dele. 
Lacan chega aos matemas aos poucos. Inicialmente estabelece algumas letras, denominadas por ele de álgebra lacaniana: S1, S2, S, a. Depois, vai articulando essas letras entre si e compondo pequenas fórmulas, como a da fantasia, a do sintoma, dos quatro discursos etc. Em 1976, quando vai ministrar conferências nos EUA, os psicanalistas norte-americanos perguntam se quer matematizar tudo e ele responde que não, que apenas pretende “começar a isolar na psicanálise um mínimo passível de ser matematizado”, isto é, quer introduzir algumas fórmulas que funcionem como balizas minimamente seguras para o trabalho dos psicanalistas e para a troca teórica entre eles. Além disso, os matemas são fórmulas que asseguram a transmissão de conceitos centrais da psicanálise, ainda que permitam uma pluralidade de leituras.” 
Fonte: “Lacan, o grande freudiano”. Marco Antônio Coutinho Jorge. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar,2009. p.10-3. 

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