Lacan era fascinado por primatologia, por histórias de ratos presos em labirintos, por macacos e jardins zoológicos. Adorava passarinhos, rãs, peixes, barulhos emitidos por animais, bestiários, plantas. Mas, acima de tudo, amava sua cadela, uma boxer, à qual atribuía sentimentos galantes para com sua pessoa. Ele dizia:
Ela se abandona a excessos de paixão comigo, nos quais assume um aspecto absolutamente temível para almas mais cautelosas, tal como existem, por exemplo, no nível de minha descendência. Receia-se então que, nos momentos em que ela começa a pular em cima de mim, arriando as orelhas, e a rosnar de certa maneira, o fato de ela pegar minhas mãos entre seus dentes pode representar uma ameaça, mas não é nada disso. Ela me ama e algumas palavras minhas recolocam tudo em ordem… Ela nunca me confunde com outro.
Tão darwiniano quanto Freud, Lacan permanecia, não obstante, ligado a um certo naturalismo, o de Buffon, revisto e corrigido pelos pintores surrealistas, por sua vez mergulhados no universo da mitografias africanas. A prosa de Lacan faz pensar em certos quadros de Giorgio de Chirico ou Salvador Dali, seu velho amigo e cúmplice, mas sobretudo, e de maneira estarrecedora, nos de René Magritte.
Intrépida e cinzelada, essa prosa interroga a defasagem entre o objeto e sua representação, ao mesmo tempo em que reduz a realidade a uma irrupção selvagem atravessada por fórmulas e arabescos. Segundo Lacan, toda realidade deve ser expressa de maneira objetal, sem o menor lirismo, uma vez que toda realidade é, em primeiro lugar, um real, isto é, um delírio. Lacan descreve a realidade como um pintor cujo modelo fosse um ovo sobre a mesa, mas que desenhasse na tela uma ave abrindo as grandes asas. Ele associa seres e coisas, paisagens e palavras, corpos e rostos, espelhos e crianças.
Foi em 1936 que começou sua iniciação na filosofia hegeliana, participando, com Raymond Queneau, Georges Bataille e muitos outros, do seminário de Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do espírito, o que o levou a elaborar sua concepção de sujeito e imaginário.
No mesmo ano, pronunciou uma célebre conferência sobre o estádio doespelho no XIV Congresso da International Psychoanalytical Association (IPA) de Marienbad, fazendo assim sua entrada, qual um meteoro, na cena do movimento psicanalítico internacional. Lá expôs o caso de uma criança instalada frente a um espelho que se regozija ao contrário do macaco, diante de sua imagem. A intervenção durou dez minutos: uma sessão curta precoce. Quanto ao texto, ninguém encontrou mais vestígios dele. Grande organizador da IPA, Ernest Jones vociferou, naquele dia, contra aquele conferencista francês de quem jamais ouvira falar e que não respeitava o tempo de fala atribuído a cada um. Humilhado, Lacan deixou o congresso para ir assistir às Olimpíadas de Berlim. O espetáculo dessa cerimônia nazista iria assombrá-lo a vida inteira.
Dois anos mais tarde, integrou o conteúdo de sua conferência em um verbete sobre família encomendado por Henri Wallon para a Encyclopédie française (1938). O verbete “Estádio do espelho” compreendia duas partes:
“1. Potência secundária da imagem especular”;
“2. Estrutura narcísica do eu.” Era de Henri Wallon, precisamente, psicólogo comunista e hegeliano, que ele tomava essa terminologia emprestada. Sempre disposto a apagar o arquivo original, Lacan omite a citação de sua fonte…Mais tarde, não parou de escamotear o nome de Wallon e apresentar-se como inventor do termo.
Não obstante, inspirava-se menos em Wallon do que em Kojève, que sugeria que o pensamento moderno dos anos 1930 registrava uma nova revolução: a passagem de uma filosofia do eu penso (Descartes) para uma filosofia do eu desejo (Freud, Hegel). Em outras palavras, Lacan, seguindo Kojève, pensava o outro ou a alteridade como objeto de uma consciência desejante.
Wallon denominara “prova do espelho” a experiência mediante a qual uma criança em frente a um espelho consegue, progressivamente, distinguir o “corpo próprio” da imagem refletida. Essa operação dialética era possível segundo ele, graças a uma compreensão simbólica por parte do sujeito do espaço imaginário no qual se forja sua unidade. Na perspectiva walloniana, a prova do espelho especificava a passagem do especular ao imaginário, e depois, do imaginário ao simbólico.
Ora, Lacan – qual um pintor surrealista – não retomava a terminologia de Wallon senão para transformar a “prova do espelho” num “estádio do espelho”, isto é, numa mistura de dois conceitos: a posição intrapsíquica no sentido de Melanie Klein, o estádio (evolução) no sentido freudiano. Assim fazia desaparecer toda referência a uma dialética natural. Na perspectiva lacaniana, o estádio do espelho tornava-se uma operação psíquica, até mesmo ontológica pela qual o ser humano é constituído numa identificação com seu semelhante.
Assim como Melanie Klein, Lacan abordava a segunda tópica freudiana – o eu, o isso, o supereu – a reboque de toda a psicologia do eu. Duas opções eram possíveis a partir de 1923. Uma consistia em fazer do eu o produto de uma diferenciação progressiva do isso, agindo como representante da realidade e tendo como função conter as pulsões (foi a Ego Psychology da escola norte-americana); a outra, ao contrário, dava as costas a qualquer ideia de autonomização do eu para estudar sua gênese em termos de identificação (será a escola francesa).
Segundo Lacan, que tomava emprestada essa ideia de Louis Bolk, embriologista holandês, a importância do estádio do espelho devia ser associada à “prematuração” do nascimento, atestada pelo inacabamento anatômico do sistema piramidal e à descoordenação motora dos primeiros meses de vida. Desde essa data, e cada vez mais ao longo dos anos, Lacan passou a se afastar da visada psicológica, descrevendo o processo sob o ângulo do inconsciente. Chegou então a afirmar que o mundo especular, local de identidade primordial do eu, não contém nenhuma alteridade. Donde a seguinte afirmação canônica: o estádio do espelho é uma fase, isto é, um estado que sucede, enquanto estrutura, outro estado, e não um estádio no sentido evolucionista do termo.
Da mesma forma que Freud se separara da neurologia demonstrando que a topografia imaginária do corpo – a fantasia – jamais coincide com uma anatomia real ou um traço neuronal, Lacan inventou um estádio do espelho que não tinha necessidade nem do suporte de um estádio nem de um verdadeiro espelho.
Com pressa de voltar à cena da IPA e vingar-se da humilhação sofrida, Lacan pronunciou uma segunda conferência sobre o estádio do espelho, em Zurique, em 1949. Lá conheceu Ernest Jones, que, dessa vez, deu-lhe tempo de ler sua comunicação. Pedira à amiga Monique Lévi-Strauss que datilografasse o manuscrito, o que ela fez com prazer. E quando sentiu dificuldade para compreender o que ele queria dizer, Lacan lhe forneceu explicações luminosas, assinalando que sua inspiração vinha da prosa de Mallarmé.
Em vez de falar do estádio ou do espelho, ou ainda dos objetos defasados de suas representações, Lacan entregou-se, em Zurique, a uma vasta reflexão sobre a noção de sujeito na psicanálise e na história das ciências. Daí a adoção de um título bem mais extenso: “O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelada na experiência psicanalítica”.
Fonte: “Lacan, a despeito de tudo e de todos.” – Elisabeth Roudinesco, Rio de Janeiro: Zahar, 2011.