Elisabeth Roudinesco, Psicanalista e autora, fala em entrevista para o Jornal Zero Hora, sobre seu livro “Sigmund Freud – em seu tempo e no nosso”.
Fonte: Blog Formação Freudiana
Autora de uma das biografias de referência de Jacques Lacan (1901 – 1981), a psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco lançou recentemente na França o que reivindica como “a primeira biografia de Freud escrita por um autor francês que renova a abordagem de sua obra”. Sigmund Freud: En Son Temps e Dans le Nôtre (“Sigmund Freud: em seu tempo e no nosso”, em tradução livre), mergulha em correspondências e em arquivos recentemente abertos pela Biblioteca do Congresso em Washington, nos Estados Unidos, para fazer uma abordagem histórica da obra de Freud – Roudinesco é uma crítica ferrenha da psicanálise que não utiliza a História para se aproximar da obra de seu fundador.
A psicanalista esteve em Porto Alegre neste fim de semana para três palestras do ciclo Diálogos com Élisabeth Roudinesco, promovido pelo Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade (CIPT). Na sexta, falou sobre A Psicanálise na Situação Contemporânea. No sábado, falaria sobre Como Ler Lacan. Neste domingo, participaria do debate A Família Contemporânea, ao lado de Roberto Graña e Ângela Piva. Roudinesco conversou com a reportagem do caderno PrOA na sede do CIPT na última quinta-feira.
A senhora veio ao Brasil para falar, entre outras temas, sobre como ler Freud no século 21. Essa é uma pergunta instigante. Como a senhora a responderia?
Penso que hoje é preciso voltar ao texto de Freud não de forma estrutural, mas histórica. Porque os psicanalistas contemporâneos, há vários anos, apenas repetem os textos de Freud de maneira engessada, esquecendo do contexto no qual ele produziu sua obra. Não podemos trabalhar a obra de Freud como um texto atemporal, temos que retornar à sua origem, à sua gênese, à maneira como ela se situa historicamente. É muito comum que o texto de Freud funcione como a Bíblia, como o Talmude. E também por isso, os psicanalistas não sabem responder aos ataques dos antifreudianos. Os psicanalistas não conhecem a vida e a obra de Freud, eles se restringem à clínica.
A senhora falou no contexto. Mas uma interpretação do contexto de Freud não teria que necessariamente confrontar o nosso contexto?
Eu chamei a minha biografia de Sigmund Freud: En Son Temps et Dans le Nôtre (“Sigmund Freud – em seu tempo e no nosso”). Penso que se não compreendermos Freud no seu tempo, como ele viveu, o que ele viu, como elaborou seus textos, muitas vezes adotamos teses completamente aberrantes, mudando de ideia permanentemente, realizando coisas geniais e coisas muito equivocadas. Se contextualizarmos sua época, entenderemos melhor a nossa e compreenderemos melhor o que é Freud hoje. Por exemplo: Freud estava convicto que o inconsciente estava fora do tempo, na eternidade, como um mito, por isso foi buscar explicações nos mitos da Grécia Antiga. Ele pensava que aquilo que existia no inconsciente chegaria necessariamente à História. Quando é deflagrada a guerra de 1914, a I Guerra, que vai destruir o primeiro movimento psicanalítico, já que era um movimento eminentemente europeu, e a guerra destruirá a Europa, Freud pensa que o Império sairá vencedor, e se engana. Ele também pensa que aquilo que aconteceu na realidade é o que se passa no inconsciente. Que a destruição, isso tudo, estava no inconsciente. Não é falso, mas eu entendo no sentido inverso.
Em meu livro, demonstro que o que Freud aplicou em sua teoria era um reflexo de sua época. Eu historicizei. Porque se aplicarmos a teoria psicanalítica a todos os contextos, como queria Freud, não compreenderemos o que está acontecendo. Ela também é produto de uma época.
Ano passado, o Brasil viu o ressurgimento de manifestações populares nas ruas. Muitos viram nelas o descrédito no sistema político. O que a senhora acompanhou desse processo?
O Brasil tem defeitos, mas é um país democrático. No momento, a pior crise que vejo é mesmo na Europa. O Brasil é um país emergente, com muitos problemas e grande desigualdade, mas ao mesmo tempo é um lugar em que se veem avanços. Já na Europa, a sensação é de melancolia. Há um sentimento de retorno do populismo, do nacionalismo, de coisas que não imaginávamos que voltariam. O sentimento hoje é de regressão, o povo europeu tem a impressão de que estão tirando as conquistas sociais. A impressão na França é que se vivia melhor há uns 40 anos, o povo esquece que a Europa pode ser uma potência, que a população hoje vive 20 anos a mais, que não podemos manter o sistema de aposentadoria como antes. O povo tem a impressão de que há imigrantes demais, mas eles sempre estiveram na França. Eu mesma sou filha de imigrantes. Eles têm a impressão de que estão acabando com suas tradições. Vivemos um momento muito mais difícil do que aqui.
Alguns críticos comentam que parte do problema na Europa se deve à disseminação do multiculturalismo, e à sua ideia de que o imigrante não deve ser assimilado, e sim reproduzir sua comunidade – o que abriria espaço para o radicalismo islâmico, por exemplo. Como a senhora vê esse argumento?
Não é verdade, mas é verdade. Não é verdade objetivamente. A assimilação dos imigrantes na Europa se dará com o tempo. Já a impressão de que não está havendo assimilação existe de fato. Há 4 milhões de muçulmanos na França. É muito. É a segunda religião do país. Mas há a imagem de que todos os muçulmanos são islamistas radicais. Não é exato. Na França, quando vemos a evolução do país, os filhos de imigrantes magrebinos se assimilam majoritariamente bem, se tornam republicanos, franceses, e se chamam Mohammed ou Sarah sem nenhum problema. O povo acha que há muitos muçulmanos porque vê as notícias sobre jihadistas, mas nem todos são jihadistas.
Mas e no caso do Estado Islâmico, em que se especula a origem europeia de seus líderes?
Isso não quer dizer que os 4 milhões de muçulmanos franceses são responsáveis. Já houve tempo em que se apontaram os judeus como responsáveis por todos os problemas da Europa. Isso se chama racismo. É preciso ser vigilante, não aceitar o comunitarismo, sobretudo o comunitarismo religioso, mas respeitar as religiões e ser vigilante quanto ao ódio que o povo muçulmano pode despertar. E aí a assimilação será feita.
A senhora também veio falar sobre novas configurações da família. No Brasil, em ano de eleição, essa questão tem sido muito discutida. Ao mesmo tempo, há o crescimento de um discurso agressivo contrário à união civil de homossexuais com base no conceito de família.
As pessoas já foram contra a abolição da pena de morte, contra o aborto, contra o divórcio. Mas na Franca elas perderam. Isso pode levar tempo, mas creio que acontecerá aqui. A questão homossexual vem encontrando oposição muito grande hoje na França. Eu participei de debates no Senado, na Assembleia Nacional, na televisão, e a questão que faço é a seguinte: eu entendo os argumentos religiosos, mas e os laicos? Quais são? Não existem. É o medo da abolição da diferença de sexos – que é uma questão que não está no centro da luta dos homossexuais. Os filhos criados por casais homossexuais não têm mais patologias do que os outros. Vão todos se tornar homossexuais? Não. Faz milhares de anos que os casais heterossexuais é que produzem filhos homossexuais. Portanto, não há argumento, a pessoa é contra e não tem um argumento racional. Outro medo dos que são contrários é que haja mais homossexuais. Não é verdade. É algo bastante misterioso, mas a porcentagem de homossexuais na maioria das civilizações se mantém constante, não importa a sociedade, não importa a época, sempre foi um fenômeno minoritário. Hoje ela é mais visível, mas não quer dizer que esteja aumentando. A heterossexualidade não vai mudar: um homem e uma mulher vão continuar atraídos e formarão família. Mas o que se quer é que a sexualidade minoritária tenha direito de existir. Ela não vai alterar ou prejudicar a “ordem natural” de homens e mulheres.
As pessoas têm medo da mudança?
Sempre haverá medo. As pessoas temem que homens virem mulheres e vice-versa. Na minha geração, se dizia que mulheres que usavam calça comprida eram masculinizadas, seriam todas lésbicas. No final do século 19, se dizia que a mulher que trabalhava não teria mais filhos. O que aconteceu? As mulheres, em vez de ter 10 filhos, passaram a ter dois. E daí? Neste momento, não precisamos mais ter uma família tão numerosa quanto antigamente. Antes morriam muito mais crianças do que hoje. No século 19, a perda de um filho era algo muito frequente, então as famílias tinham muito mais filhos. Hoje não precisa mais ser assim. E nos países em que isso levou a baixo índice de natalidade, foi compensado pela imigração. As pessoas querem que tudo continue como elas acreditam que é. Mas não é possível. Tudo sempre muda. E por isso, voltando à primeira pergunta, é preciso pensar em Freud na história e pensar historicamente em nosso futuro. No futuro, os homossexuais poderão casar, e as crianças criadas por eles vão ter exatamente os mesmos problemas que têm hoje. Não é pior e não é melhor, será a mesma coisa.
PSICANÁLISE E HISTÓRIA
Ao longo de quase 600 páginas, Élisabeth Roudinesco desenvolve em seu recente Sigmund Freud: En Son Temps et Dans le Nôtre (“Sigmund Freud – em seu tempo e no nosso”) o que alega ser a “primeira biografia francesa” de Sigmund Freud (1856 – 1939). E escolheu fazer isso com um método que define como quase inexistente na literatura psicanalítica a respeito da obra de Freud: com uma aproximação histórica. O livro entrecruza leituras da obra de Freud com a reconstrução do contexto de sua época, e de como o que Freud viu e viveu se plasmou em seus textos fundadores da psicanálise. O livro tem previsão de publicação no Brasil no ano que vem, pela editora Zahar
Matéria de Carlos André Moreira, publicada no Jornal Zero Hora, em 04 de outubro de 2014.
Fonte: http://www.freudiana.com.br/novidades/nao-podemos-trabalhar-obra-de-freud-como-atemporal-e-roudinesco.html