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O homem comportamental

Por: Elisabeth Roudinesco

“Inscrita no movimento de uma globalização econômica que transforma os homens em objetos, a sociedade depressiva não quer mais ouvir falar de culpa nem de sentido íntimo, nem de consciência nem de desejo nem de inconsciente. 
Quanto mais ela se encerra na lógica narcísica, mais foge da ideia de subjetividade. Só se interessa pelo indivíduo, portanto, para contabilizar seus sucessos, e só se interessa pelo sujeito sofredor para encará-lo como uma vítima. E, se procura incessantemente codificar o déficit, medir a deficiência ou quantificar o trauma, é para nunca mais ter que se interrogar sobre a origem deles. 
Assim, o homem doente da sociedade depressiva é literalmente “possuído” por um sistema biopolítico que rege seu pensamento à maneira de um grande feiticeiro. Não apenas ele não é responsável por coisa alguma em sua vida, como também já não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser um ato decorrente de sua consciência ou de seu inconsciente. Recentemente, por exemplo, na ausência da mais ínfima prova e a despeito de vivos protestos de inúmeros psiquiatras, um pesquisador norte-americano teve a pretensão de afirmar que a causa exclusiva do suicídio residiria não numa decisão subjetiva, numa passagem ao ato ou no contexto histórico, mas numa produção anormal de serotonina. Com isso se eliminaria, em nome de uma pura lógica químico-biológica, o caráter trágico de um ato intrinsecamente humano, de Cleópatra a Catão de Útica, de Sócrates a Mishima, de Werther a Emma Bovary. Seriam igualmente aniquilados, em virtude de uma simples molécula, todos os trabalhos sociológicos, históricos, filosóficos, literários e psicanalíticos, de Émile Durkheim a Maurice Pinguet, que deram uma significação ética e não química à longa tragédia da morte voluntária. 
É pela adoção de princípios idênticos que alguns geneticistas pretendem explicar a origem da maioria dos comportamentos humanos. Desde 1990, eles vem tentando evidenciar o que denominam de mecanismos “genéticos” da homossexualidade, da violência sexual, do alcoolismo ou da esquizofrenia.
[…] No fim da vida, Freud tinha consciência de que, um dia, os avanços da farmacologia imporiam limites à técnica do tratamento pela fala: “O futuro”, escreveu ele, “talvez nos ensine a agir diretamente, com a ajuda de algumas substâncias químicas, sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho psíquico. Haveremos nós de descobrir, talvez, outras possibilidades terapêuticas insuspeitadas? 
Por ora, no entanto, dispomos somente da técnica psicanalítica. E é por isso que, a despeito de todas as suas limitações, convém não desprezá-la.
Se Freud não estava enganado, estava longe de imaginar que o saber psiquiátrico seria aniquilado pela psicofarmacologia. Do mesmo modo, não imaginava que a generalização da prática psicanalítica na maioria dos países ocidentais seria contemporânea dessa aniquilação progressiva e do emprego de substâncias químicas no tratamento das doenças da alma.
[…] Em princípio, deveria ter-se mantido um equilíbrio entre o tratamento por psicotrópicos e a psicanálise, entre a evolução das ciências do cérebro e o aperfeiçoamento dos modelos significativos de explicação do psiquismo. Mas não foi o que aconteceu. A partir dos anos oitenta, todos os tratamentos psíquicos racionais, inspirados na psicanálise, foram violentamente atacados em nome do avanço espetacular da psicofarmacologia, a tal ponto que os próprios psiquiatras, como já afirmei, sentem-se hoje inquietos e criticam duramente seus aspectos nocivos e perversos. Com efeito, eles temem ver sua disciplina desaparecer em prol de uma prática híbrida que, por um lado, reservaria a hospitalização para a loucura crônica, pensada em termos de doença orgânica e ligada à medicina, e por outro, encaminharia aos psicólogos clínicos os pacientes que não fossem suficientemente loucos para depender de um saber psiquiátrico inteiramente dominado pelos psicotrópicos e pelas neurociências.”
Fonte: Por que a Psicanálise? Elisabeth Roudinesco (pg. 42 a 47) Rio de Janeiro, Zahar Ed., 2000.

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