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O Marinheiro de Gibraltar

“Aqueles dias foram, em Florença, os mais quentes do ano. Eu já havia sentido calor nam inha vida, nascera e me criara nos trópicos, nas colônias, e já tinha lido coisas a respeito na literatura, mas foi em Florença, nesses dias intermináveis, que aprendi tudo sobre o calor. Foi um verdadeiro acontecimento esse calor. Nada mais aconteceu. Fez calor, e só, na Itália inteira. Falou-se de 47 graus em Módena. E quantos em Florença? Não sei. Durante quatro dias a cidade esteve à mercê de um calmo incêndio, sem chamas, sem gritos. Tão angustiada quanto pelas epidemias e pelas guerras, a população, durante quatro dias, não teve outra preocupação senão resistir. Era uma temperatura imprópria não só para seres humanos, mas também para os animais. No zoológico, um chimpanzé morreu. E até mesmo os peixes morreram asfixiados. Eles empestavam o Arno, falava-se deles nos jornais. O macadame das ruas era pegajoso. O amor, acho eu, tinha sido banido da cidade. Nenhuma criança sequer deve ter sido concebida nesses dias. Nenhuma linha deve ter sido escrita, a não ser nos jornais, pois estes não falavam de outra coisa. E os cães devem ter esperado dias mais clementes para se acasalarem. Os assassinos devem ter recuado diante do crime, e os amantes se negligenciado. Inteligência? Não se sabia mais o que queria dizer. A razão, aniquilada, delirava.

Personalidade tornou-se uma noção muito relativa, cujo sentido escapava. Era ainda pior que o serviço militar. Nem o próprio Deus teria esperado tanto. O vocabulário da cidade tornou-se uniforme e se reduziu ao extremo. Estou com sede. Isso não pode durar. Nunca durou tanto. Isso não podia durar, não havia antecedentes de que tivesse durado mais de alguns dias. Na noite do quarto dia, caiu um temporal. Era tempo. E cada qual, na cidade, retomou sua especialidade. Eu não. Ainda estava de férias. 


Esses cinco dias, para mim, se pareceram bastante. Passei-os inteiros num café. Quanto a Jacqueline, ela visitou Florença.

Emagreceu muito, dessa feita, mas foi até o fim. Visitou, acho eu, todos os palácios, museus e monumentos que se pode visitar em oito dias. Não sei no que ela poderia estar pensando. 

Mas eu, nesse bar, enquanto tomava cafés gelados, sorvetes e mentas, pensava no Magra. E ela, no que estaria pensando? Não seria no Magra, seria bem diferente, talvez até o oposto do Magra. E eu, o dia todo, o Magra sempre fresco, mesmo nos piores calores, sempre fresco, repetia comigo mesmo. O mar já não me bastava, eu precisava de um rio, de águas à sombra das árvores. 

No primeiro dia, fui do hotel ao bar. Após um café gelado, pensei, iria dar uma volta pela cidade. Passei a manhã toda no café. Jacqueline me encontrou ao meio-dia, diante da sexta cerveja. Ficou indignada. Mas como, estar em Florença pela primeira vez na vida e passar a manhã toda num café! “Hoje à tarde”, disse eu, “hoje à tarde vou tentar”. Ficou combinado que cada um passearia por conta própria, e só tornaríamos a nos encontrar na hora das refeições. Portanto, terminado o almoço, ela me deixou. Voltei ao café que ficava perto do restaurante. O tempo passou depressa. Às sete da noite eu ainda estava lá. Jacqueline tornou a me encontrar, dessa vez diante de uma menta. Continuou indignada. “Se me mexer, morro”, disse-lhe eu. Disso eu estava certo, assim como estava certo de que no dia seguinte a coisa ia melhorar.” 

“O Marineiro de Gibraltar” – Marguerite Duras, Ed.Guanabara, 1987.

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