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O Real imprevisível do trauma

Por: Patrícia Spessi 

“O traumatizado nos instrui sobre a memória, ele que é assombrado por um encontro que não pode esquecer, que o assalta de noite se ele escapa de dia, que frequentemente o deixa sem trégua, absorvendo a totalidade de sua libido e de seus interesses, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam.” (Soler, 1998) 

Procuro elaborar aqui a ideia do trauma como um acontecimento atual na vida de um sujeito e não como um acontecimento ocorrido na infância, de conotação sexual, recalcado e possível causador de uma neurose. 

O conceito de trauma, no período inicial da psicanálise, estava atrelado aos conhecimentos ligados à histeria. O trauma psíquico é compreendido, neste momento, como aquelas experiências emocionais que se constituem como fato etiológico para o aparecimento da histeria, ou seja, é toda impressão ou vivência que provoque afetos penosos de medo, susto ou vergonha e que o sistema psíquico tem dificuldade para resolver por meio do pensamento associativo ou por reação motora. 

Segundo Laplanche e Pontalis, o trauma pode ser definido como: 

“um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações.” (Laplanche & Pontalis, 2001) 

Pensarei aqui o conceito de trauma como um questão da atualidade (atualidade social e atualidade na vida do sujeito) pois podemos observar que em nossa sociedade, casos de violência urbana como sequestros e assassinatos, estão muito presentes nos meios de comunicação. 

O trauma seria então um dos nomes que poderíamos dar ao horror do mal-estar quando ele vem de fora, de surpresa, sem que se possa imputá-lo ao sujeito que sofre dele as consequências. Em função disso, é referido a um acontecimento que assalta o sujeito, algo impossível de antecipar ou evitar e que exclui seu desejo, um acontecimento sem relação com seu inconsciente, um encontro com algo que ele não aguenta, uma ferida que deixa sequelas, como tantas marcas que cremos inesquecíveis. 

Diferentemente do sintoma neurótico, o sintoma traumático não se encontra sob o domínio do princípio do prazer, não impulsionam a realização do desejo, nem o compromisso entre instâncias, nem o retorno do recalcado, mas o reviver persistente da situação traumática. 

Como abordar e tratar o trauma sobre esta perspectiva? Segundo Myriam Uchitel: 

“Parece-me necessário tornar independente os conceitos de trauma e neurose. o impacto que uma situação traumática instala (associado ao excesso de excitação, ao fator surpresa, à ruptura da barreira de proteção ante os estímulos externos e à desproteção ante a implosão dos internos, ao fracasso na ligação, a um ataque às funções do ego, à dificuldade em poder representar o evento a uma falha da defesa e da angústia sinal) ocasiona um estado traumático que pode, ou não, derivar em neurose, assim como também poderia derivar em psicose, em perversão ou em outros transtornos como os borderline por exemplo.” (Uchitel, 2001) 

O trauma é sempre uma irrupção do real, um arrombamento provocado por elementos de uma cena que atingem um sujeito despreparado para pensá-la. O traumático tem sempre o caráter imprevisível, surpreendente, incompreensível e, portanto, insuportável. Falar do trauma implica falar do irrepresentável, daquilo que as palavras não alcançam sem dificuldade. Como ou onde encontrar palavras para falar do irrepresentável? 

Poderíamos dar outros exemplos, citando os traumatizados do terrorismo, as vítimas de atentados sexuais e as das catástrofes naturais. 

Freud, em seu texto “Além do princípio do prazer”, diz que embora a neurose traumática possa advir do impacto de um acontecimento que deixa marcas até mesmo no corpo (como em guerras, acidentes, etc), o trauma psíquico, não é provocado por nenhuma lesão, mas sim, pelo susto, pelo sobressalto, pela surpresa que acaba convertendo o evento em um trauma psíquico: 

“…No caso das neuroses traumáticas comuns, duas características surgem proeminentemente: primeira, que o ônus principal de sua causação parece repousar sobre o fator da surpresa, do susto e, segunda, que um ferimento ou um dano infligidos simultaneamente operam, via de regra, contra o desenvolvimento de uma neurose. ‘Susto’, ‘medo’ e ‘ansiedade’ são palavras impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são, de fato, capazes de uma distinção clara em sua relação com o perigo. A ‘ansiedade’ descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática; nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim, contra as neuroses de susto.” (Freud, 1920) 

Podemos pensar então, que esses quadros que aparecem como consequência de impactos, sustos ou acidentes não são neuroses, pois não parecem remeter a um conflito entre o ego e as pulsões eróticas como nas neuroses. Esses quadros podem levar o sujeito a estados de luto, devido a mortes, perdas e mudanças extremas em sua vida, porém não podemos dizer que foram os causadores de uma neurose. Freud fala da fixação afetiva que pode ocorrer em alguns casos. Esclareço, citando um trecho da sua conferência sobre a fixação em traumas, em que ele relaciona a situação traumática com o processo de luto: 

“Quanto ao tema da fixação numa determinada fase do passado, podemos, porém, acrescentar que tal conduta é muito mais difundida do que a neurose. Toda neurose inclui uma fixação desse tipo, mas nem toda fixação conduz a uma neurose, coincide com uma neurose ou surge devido a uma neurose. Um perfeito modelo de fixação afetiva em algo que é passado, é o que se nos apresenta no luto, que realmente envolve a mais completa alienação do presente e do futuro.

Mesmo o julgamento de um leigo, contudo, distinguirá com nitidez entre luto e neurose. Existem, por outro lado, neuroses que podem ser descritas como forma patológica de luto. Também pode acontecer que uma pessoa seja levada a uma parada tão completa, devido a um acontecimento traumático que estremece os alicerces de sua vida, a ponto de abandonar todo interesse pelo presente e pelo futuro e manter-se permanentemente absorvida na concentração mental no passado. Uma pessoa assim desafortunada, porém, não se torna, por isso, necessariamente neurótica. Não atribuiremos, portanto demasiado valor a este único aspecto ao caracterizar a neurose, embora ele esteja regularmente presente e possa ser geralmente importante.” (Freud, 1916) 

Segundo Myriam Uchitel o conceito de fixação enriquece a compreensão do trauma. Conforme esta autora, devido à fixação, “o trauma impede as transcrições; a liquidação das excitações não acontece, produzindo-se uma sobrevaloração do acontecimento pelo acúmulo das excitações da vivência”. A libido ficaria então presa, sem mobilidade, sugada pelo trauma; associada quase que por inteiro, consciente e inconscientemente à cena traumática. A libido não flui, não se desprende e, portanto, não fica livre na direção de novas conexões e investimentos.

Citando novamente Freud: “…o termo ‘traumático’ não tem outro sentido senão o sentido econômico. Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal… só pode resultar em perturbações” (Freud, 1916). 

Utilizo na elaboração deste trabalho cenas do filme “Reine sobre mim”, que conta a história de um homem que perde sua família, (esposa e três filhas) nos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York.

Cherlie, vivido pelo ator Adam Sandler, aparece nas primeiras cenas do filme andando solitariamente em seu patinete pelas ruas de Nova York, ouvindo um walk-man, quando é visto por seu antigo colega de faculdade, Alan. Retomam sua antiga amizade. Os dois são formados em odontologia e chegaram a dividir o mesmo apartamento na época da faculdade. 

Quando o amigo vai à casa de Charlie, percebe que este está reformando a cozinha, tem uma sala com equipamentos de som e está sempre jogando vídeo-game. 

Charlie demonstra seu isolamento quando encontra com os ex-sogros e foge deles, não quer falar-lhes, diz ao amigo que não tem família. Não suporta quando tocam no assunto de sua perda; grita com o amigo: “te mandaram aqui! Mande me deixarem em paz!”. Comenta em outra cena: “Você cheira a psicanalista!” 

Através de uma conversa com a sogra de Charlie, seu colega fica sabendo que ele perdeu os pais na infância, tendo ido morar com uma tia até o início da faculdade. Vemos então, uma perda importante ocorrida em sua infância. Ela comenta que depois do ocorrido nos atentados, ele se isolou, abandonou o trabalho e recusa-se a falar sobre o acontecido: “Ele finge não se lembrar delas… e de nós…” diz a sogra. “Desde então, ele vive com a indenização do governo.”

Seu amigo então o aconselha a fazer análise com uma analista que ele lhe indica. Os dois amigos passam a se divertir indo a sessões noturnas de cinema, quando Alan (o amigo de Charlie) recebe uma ligação comunicando-o sobre a morte de seu pai. Charlie lhe diz: “Quer ir tomar café de manhã?”, ao que o amigo responde: “Meu pai acaba de morrer!” e Charlie continua: “Há uma loja que vai abrir e vende bancadas de cozinha, quero que veja uma…”

“Meu pai morreu!…”

“Sei, mas quero ficar com você… vamos comer comida chinesa…” Parece haver aí uma negação da realidade, uma negação da morte e das angústias que ela pode acarretar a quem tenta olhar para ela.

Ao visitar o amigo em seu consultório, Charlie olha para seus equipámentos e os diplomas expostos na parede e demonstra sentir saudade daquilo tudo. Sempre se mostra irritado quando alguém tenta tocar no assunto de sua família. Reconhece então que precisa de ajuda. Procura a analista indicada pelo amigo.

Na primeira sessão, acha a analista muito jovem. Diz: “eu tenho umas coisas sobre as quais não gosto de pensar…” (coloca o fone de ouvido). A analista fica calada e permite que ele mesmo encerre a sessão.

Continua a reforma em sua cozinha.

Após algum tempo e algumas sessões de análise, lembra que foi mal-educado com a esposa porque ela queria a reforma da cozinha… foi a última vez que se falaram. Logo em seguida, houve o atentado.

Parece que esta eterna reforma da cozinha foi a maneira que ele encontrou de estar próximo à esposa (ao seu desejo) e às lembranças dela.

Charlie continua fazendo análise e passa a lidar melhor com sua perda, podendo falar mais sobre a questão do seu trauma e da sua dor. 

No exemplo deste filme, vemos um homem fixado ao acontecimento traumático, um homem que se isola do contato com os outros e que passa a não investir sua libido no relacionamento com outras pessoas, em outros objetos,como dizemos em psicanálise. Fica evidente o quanto o impacto do trauma modificou sua relação com o mundo.

Sandor Ferenczi, psicanalista húngaro contemporâneo e colaborador de freud, estudou a teoria do trauma e deu muitas contribuições sobre este tema. Segundo ele, o choque do trauma seria uma reação a uma excitação externa ou interna em um modo que modifica o eu. O impacto não deixa o ego ileso, produz uma nova condição impossível de acontecer sem a dissolução do eu procedente. Ferenczi coloca assim em relevo a importância da intensidade física e psíquica do evento traumático e o estrago que provoca no eu do sujeito. Um eu que, não podendo modificar a excitação externa, se modifica a si mesmo para suportá-la. O choque equivale à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do si mesmo, e é a força desse choque, da excitação ‘insuportável’ que determina o grau de profundidade da decomposição do ego. Sobre este choque e esta introjeção impossível do traumático, Uchitel comenta: 

“O trauma apresenta-se como o exemplo mais gritante da ‘introjeção impossível’. Impossível, enquanto não pode atribuir representações e sentidos ao evento, dificultando, ou melhor, impedindo a isncrição psíquica; impossível, pelo congelamento e imobilidade que provoca, porque o ‘choque inesperado, não preparado e esmagador age por assim dizer como um anestésico no aparelho psíquico…produzindo uma suspensão de toda espécie de atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resistência. A paralisia total da modalidade inclui também a suspensão da percepção, simultaneamente com a do pensamento.” (Uchitel, 2001) 

Continuando, ela acrescenta: “A consequência dessa desconexão da percepção é que a personalidade fica sem nenhuma proteção. Contra uma impressão que não é percebida, não há defesa possível”. (Uchitel, 2001) 

Ainda segundo esta autora, “…Pela clivagem o ego cinde-se, o trauma fica fora do recalque e da representação, excluindo a vivência traumática de qualquer contexto significativo”. A clivagem (‘divisão de si próprio’) viria então, como a tentativa de fazer ‘o trauma não acontecer’, restando para o psiquismo as parcelas dispersas dos fragmentos clivados. Na instalação do trauma, a excitação que deveria ter tomado o caminho da representação, da ligação, ficou presa no circuito incessante das excitações sem forma. Por isso o trauma não fala, se faz sentir e atua. O que ele repete não é uma representação, mas uma percepção sem palavra. No filme, isso é retratado em algumas cenas, onde o personagem sai da sala quando a analista permite que ele fale sobre sua dor. Como falar do impossível de dizer?

Teria o ser humano outro meio de se defender do trauma? Além da clivagem, poderíamos incluir o uso da fantasia para proteger o aparelho psíquico do sujeito frente a certos acontecimentos insuportáveis? Colette Soler,comenta em seu texto sobre o trauma: 

“… Filtrando as contingências dos encontros conforme sua conveniência, a fantasia é o que protege dos maus encontros do traumatismo pelo real. às vezes, é claro, essa segurança é um peso para o sujeito, sabemo-la bem demais, mas ainda assim é uma segurança contra o real. Isto é a tal ponto verdade que podemos nos perguntar seriamente se um sujeito feliz, armado com sua fantasia para se proteger de toda eventualidade, se tal sujeito é traumatizável ou se ele não seria mais impermeável a tudo o que não está no programa de seu inconsciente. É aí que percebemos que, por mais brutal que seja, um encontro só pode ser traumático no caso de haver uma participação subjetiva, uma ‘interiorização’ do perigo, dizia Freud. Não é suficiente que alguma coisa caia sobre as cabeças de vocês para que um pavor se instaure ou para que uma marca indelével se inscreva para sempre. É como se o trauma original operasse na forma de vacina contra o real, produzindo um sujeito inapto a receber novas marcas”. (Soler, 1998) 

Observamos no filme um homem cuja ferida do acontecimento traumático não fechou, nem cicatrizou. Seu trauma agia como uma ferida candente, que ficava propensa a se abrir diante de qualquer nova agressão externa que a circundava. Para esta pessoa, parecia não haver passado nem futuro, só havia presente. 

“A experiência traumática é tão forte quanto a dor, que impede de sentir as outras partes do corpo, exceto a dolorida. E, no entanto, o trauma anestesia. É certo, anestesia tudo, menos o umbigo do arrombamento, a ferida pelo real: ali o sujeito ainda se sente viver um pouco, familiar a si próprio, nessa estase da vida, tempo parado, sensações, ideias, sentimentos suspensos no instante da deflagração. Nem antes nem depois, o traumatizado se esgota tentando dar a vida a um museu de cera. Viverá na espera inconsciente do retorno do trauma, sua única morada, para aí se reencontrar um pouco e se perder novamente, caso não encontre ninguém para lhe indicar a existência de um outro lugar.” (Zygouris, 1995) 

Poderíamos pensar que a qualidade e a intensidade do trauma, o momento da estruturação psíquica em que ele ocorreu e os recursos com os quais o personagem contava no momento do trauma parecem ter determinado a gravidade e as consequências desse evento traumático. Na história encenada, o personagem já havia tido perdas importantes na infância: a dos pais. Havia discutido com a esposa pouco antes do acontecimento, por isso estavam brigados, o que pode ter ocasionado sentimentos de culpa. Colette Soler comenta sobre as sequelas individuais de cada traumatizado, incluindo nelas o papel do inconsciente: 

“O traumatismo, em seu impacto, é real; as sequelas são do sujeito. Os psicanalistas, portanto, tem sua palavra a dizer e podem receber muito bem os traumatizados, recebem tantos traumatizados da origem que são todos os seres falantes.

Quanto a isso, é urgente uma oposição ao discurso determinista que pretende estabelecer uma correspondência biunívoca entre uma causa traumática e suas consequências sintomáticas, pois entre os dois, há o inconsciente. Mantenhamos as duas dimensões para compreendermos a extensão da virtualidade traumática.” (Soler, 1998) 

A autora fala do inconsciente, aquilo que é individual para cada sujeito, ou seja, cada sujeito irá suportar o trauma conforme suas vivências. Podemos pensar, assim, que todo arranjo psíquico é individual e é uma resposta contra o impacto do trauma. A severidade com que um conteúdo se expulsa ou simplesmente não se integra, que vai da repressão à negação, expressa formas diferentes de reagir ante o acontecimento traumático. É comum se ouvirem histórias nas quais uma pessoa, perfeitamente capaz de gestos de sobrevivência adaptados, no momento da irrupção do acontecimento, em seguida se separar totalmente dele, como se tivesse acontecido a um outro, o que parece ter ocorrido no filme. A vida do personagem parecia prosseguir sem grandes emoções, nada se assemelhava mais à vida do que a sobrevivência… e, no entanto… não havia mais passado, presente ou futuro.

Como lidamos com os traumatizados na clínica? Quando recebemos um paciente, qual a diferença entre olhar para ele a partir da estrutura, do conflito e do recalque, e olhar para ele a partir do trauma? Talvez possamos responder levando em conta a questão inicial proposta neste trabalho: trata-se de um trauma recente na vida do sujeito, portanto (provavelmente) consciente, ou de um trauma infantil, relacionado à sexualidade, portanto (provavelmente) recalcado e causador de uma neurose? Acredito que a direção do tratamento é diferente quando conseguimos identificar a que acontecimento e a que época se referem o trauma do paciente. 

O relato de lembranças recentes ou longínquas, conscientes ou reconstruídas com base em fragmentos, com a condição de fazerem sentido para um outro – no caso o analista – pode significar a possibilidade da restauração de um laço entre uma experiência singular e os fundamentos míticos que ordenam as comunidades humanas, que ultrapassam a relação dual. Esse tempo derradeiro de uma análise representa o retorno do indivíduo, que a experiência traumática havia tornado estrangeiro a seu próprio tempo e ao dos outros, à comunidade de seus semelhantes.

O impacto da realidade sobre o sujeito é de grande importância para a análise. Toda realidade material, ao ser vivida, cobra realidade psíquica e é sobre esta, sobre as significações que o vivido tem para o sujeito, que a psicanálise trabalha sem deixar de dar importância ao papel da fantasia. Precisamos transpor a energia física do sujeito para energia psíquica, a quantidade para a qualidade, a força para o sentido; auxiliando-o para que represente o percebido em palavras. ‘Destraumatizar’ é permitir que um drama singular seja reconhecido para que possa se inscrever na lógica das tragédias que estruturam nossos mitos fundadores. Trata-se de reintroduzir o impensável nas redes de um discurso de maneira que um sujeito possa se reconhecer em suas faltas e infortúnios.

“Destraumatizar é reconhecer o ‘real traumático’, soldar as partes cindidas, ou melhor, ligar e comunicar os diversos fragmentos atomizados pela clivagem, abordar e interceptar a compulsão repetitiva, ficando atentos ao trauma que não aparece no discurso, mas no ato. Destraumatizar é promover a escrita da história em primeira pessoa, com as coincidências, as diferenças e originalidades.” (Uchitel, 2001) 

Pode-se dizer, também, que todo sofrimento traumático implica uma re-inscrição em uma dimensão que ultrapassa o quadro privado – até íntimo – de seu surgimento, pela simples necessidade de seu reconhecimento que só pode ser feito por um outro. Uma das condições que orientam a terapêutica, favorecendo a retirada das catexias, seria a dissociação psíquica entre o evento traumático e o excesso de excitação que esse acontecimento provoca. Como passar do sintoma à lembrança, como conseguir que o excesso de excitações se redistribua ou diminua pela descarga, e como driblar os obstáculos que se opõem à ação terapêutica, são as questões que estão colocadas em relação à técnica.

O trauma é sempre trágico, pois invariavelmente destitui o sujeito de seu lugar simbólico, contudo, para ‘curá-lo’, é preciso passar novamente pelo reconhecimento do seu drama, do que apenas ele viveu e da maneira como sentiu. Se a realidade de um trauma, mesmo reconhecida, só recebe por tratamento uma interpretação que vem recobrir o acontecimento com uma significação, a saída é pouco provável. 

Se, ao contrário, o tratamento consiste em dar um sentido singular, e não já de imediato uma significação geral à cena, então ela poderá se abrir a outros sentidos. É este o trabalho de construção e elaboração psíquica que não pode ser reescrita solitária do analisando de sua história, mas sim trabalho conjunto. Zygouris fala da importância da participação e da presença do analista na elaboração do trauma: 

“O relato só adquire sentido se um outro, o destinatário, for afetado. caso o analista permaneça do lado de fora e não endosse, num primeiro momento sem saber, e depois de modo consciente (este é seu trabalho), um dos pólos um dos elementos significantes da cena traumática, não terá como permitir ao analisando abandoná-la ao passado. Já que, para sair de uma cena traumática, não se pode estar sozinho. É preciso que haja um outro aparelho psíquico, um semelhante, para poder juntar as pulsões, os afetos e as palavras, por seu intermédio e aposta.” (Zygouris, 1995) 

Encerro este trabalho, citando o trecho de um texto em que a autora, psicanalista, se debruça sobre a questão do trauma ocasionado aos americanos pelos atentados terroristas de 11 de setembro, e tece comentários a respeito da reação da mídia e do governo diante destes acontecimentos: 

“Parece que na impossibilidade de acolher a participação da morte na vida, impossibilidade de acolher a participação da destrutibilidade e do não senso no centro de nós mesmos, a morte, ou seus efeitos, diante desta rejeição, retorna de fora e reclama reificações. E neste momento, não há Prozac ou medidas de segurança que sejam eficazes para detê-la. Isto porque o que é rejeitado retorna sempre ainda mais forte. 

Em uma análise mais extensa Ledes assinalou a diferença entre a maneira pela qual Freud fez sua abordagem do trauma, da violência e da destrutividade humanas considerando-os como elementos constitutivos da subjetividade e o modo como o trauma é tratado dentro da perspectiva norte-americana, sobretudo pelo governo e pela mídia. Nesta perspectiva o inimigo está sempre na exterioridade, e o risco do ataque é sempre iminente. Sem terem noção do dano que com isso eles se auto infligem. 

O modelo do trauma, traduzido pelo trauma da guerra ofereceu a possibilidade de promover um esquecimento do perigo interno. Este esquecimento parece ter afetado também a psicanálise que se expandiu nos Estados Unidos, justamente depois da II Grande Guerra, acabando por dar suporte ao desenvolvimento da psiquiatria, reconhecida então como nova psiquiatria. A psicanálise se difundiu imensamente aí, porém ficou comprometida pela psiquiatria e pelo ideal pragmático do american way of life.” (Maurano, 2009) 

Bibliografia: 

FREUD, Sigmund – Conferência XVIII – Fixação em traumas – O Inconsciente- Volume XVI – Obras Completas
FREUD< Sigmund – Além do princípio doprazer – Volume XVIII – Obras Completas, 1920
LAPLANCHE & PONTALIS, J.B. – Dicionário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001
MAURANO, Denise. Da idolatria à mulher. (Um caminho percorrido pelos psicanalistas num Colóquio na França, motivado pelo atentado de 11 de setembro em Nova York) Disponível em: www.gradiva.com.br/site/scripts/maurano.htm, 2009
SOLER, Colette – Les discours-écran (Os discursos tela). Disponível em www.antroposmoderno.com, 1998.
UCHITEL, Myriam – Neurose Traumática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
ZYGOURIS, Radmila – Ah! As belas lições! São Paulo: Escuta, 1995.

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