Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Ao longe, ao luar,
No rio de uma vela,
Serena a passar,
Que será que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
(PESSOA, 1965:143)
Há uma inquietante semelhança entre a bucólica paisagem do tranquilo mar azul e a serena fisionomia de alguém que dorme profundamente. Em ambas as situações, por baixo daquela superfície suavemente ondulada ou no íntimo do sonho que este rosto não revela, podem existir perigos inimagináveis que apavoram o mergulhador ou despertam subitamente o sonhador. Este súbito despertar é o que caracteriza o sonho de angústia e descrições desta vivência fazem parte da história da Psicanálise, desde “A Interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900) até os famosos casos clínicos de Freud. Dentre estes, é no “Homem dos lobos” (FREUD, 1918) que esta vivência tem um papel central, já que todo o caso é construído a partir da descrição de um sonho de angústia do analisando, o qual foi retratado em uma tela pelo próprio paciente, hoje exposta no museu de Londres.
A angústia sempre foi um tema amplamente abordado pelas diversas expressões artísticas. Há uma famosa pintura de Eduard Munch intitulada “O grito”, comumente considerada a imagem da angústia, que retrata em primeiro plano uma figura humana gritando em desespero. Confirmando o postulado freudiano de que o artista antecipa o psicanalista, entretanto, o mesmo pintor deu o título de “Angústia” a outra tela na qual todas as pessoas parecem estar em absoluto silêncio. É com esta imagem ou com a de um grito contido e sufocado, seja em pintura ou em escultura, que a angústia é invariavelmente retratada pelos artistas. O mesmo aspecto é, obviamente, expresso em palavras, como:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia indiferente a todos.
Faço-os calar…
(PESSOA, 1965)
Mas talvez uma das formas mais concisas e precisas de, poeticamente, descrever este sentimento é a de Ana Cristina César quando diz que “angústia é fala entupida”. É revelador observar que, embora entupida, a angústia é fala que precisa ser bem escutada.
Sonhos e angústia
É redundante enfatizar a importância central que “A Interpretação dos sonhos”, grande obra inaugural da Psicanálise, teve na descoberta do inconsciente e na descrição dos processos envolvidos na produção de sua principal manifestação: o sonho. Prova de que este era o entendimento de Freud, que protelou por um ano a publicação da obra para, significativamente, celebrar com ela o início de um novo século, é a central formulação de que “o sonho é a via régia do inconsciente” (FREUD, 1900). Porém, a obra encerra, em meio a outras inúmeras valiosas indicações clínicas, uma que, embora fundamental, frequentemente passa despercebida: a de que “o sonho é apenas uma forma de pensar” (IDEM). Esta perspicaz observação é essencial na construção da tese aqui defendida, porque ela alerta para o fato, óbvio mas comumente subestimado, de que sono e vigília são estados mentais de um mesmo sujeito, com diferentes expressões do inconsciente.
Porém, a formulação revolucionária que sintetiza a ideia central defendida por Freud na obra é a de que “o sonho é a realização de um desejo inconsciente” (IBIDEM) e são numerosos os exemplos que ele dá como evidências desta sua afirmação clínica. Mas, corroborando o dito popular que reza que “toda regra tem uma exceção”, Freud se depara com um impasse e, embora tenha inicialmente reconhecido em “Interpretação dos Sonhos” que os sonhos de angústia pareciam contradizer sua formulação essencial de serem os sonhos realizações de desejos, esforçou-se teoricamente ao longo da obra em adequá-los à sua genial proposição fundamental sem, contudo, satisfazer-se com as próprias explicações. Registros desta frustração se encontram em diferentes passagens, como “parece que os sonhos de angústia tornam impossível asseverar a fórmula geral de que os sonhos são realizações de desejos”, ou “sonhos de angústia estão fora do marco psicológico da formação dos sonhos”, chegando a confessar que ele gostaria de “omitir toda a discussão sobre os sonhos de angústia, evitar a necessidade de penetrar em todas as obscuridades que os rodeiam” (IDEM). Numa revisão da obra feita em 1911, Freud termina por caracterizar os sonhos de angústia como uma falha na produção onírica e acrescenta a intrigante afirmação de que “a angústia nos sonhos, insisto, é um problema da angústia e não um problema dos sonhos” (IBIDEM, 1911). O caráter enigmático dos sonhos de angústia tem, desde então, desafiado a Psicanálise a dar-lhes uma direção interpretativa que contemple simultaneamente teoria dos sonhos e conceito de angústia.
O impasse teórico de Freud em conciliar sonhos – realizações de desejos – com sonhos de angústia pode ser resumido em sua afirmação de que “a angústia é o oposto direto do desejo” (FREUD, 1916). Após a assim chamada “primeira teoria da angústia”, em que Freud associa o surgimento da angústia à sexualidade e ao recalque e, portanto, ao desejo, ele aprofunda sua investigação sobre o tema e conclui sua concepção sobre o assunto em “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1926). Embora nesta obra Freud ainda afirme que “a angústia de castração é a angústia por excelência” (IDEM), nela ele introduz abordagem radicalmente nova sobre a angústia, que pode ser sintetizada assim: “…concepção da angústia como anterior ao recalque e inextricavelmente ligada, não à sexualidade, mas ao desamparo. É, na verdade, tal como na proposta de Rank do trauma do nascimento, basicamente angústia de separação e de desproteção, da qual a angústia de castração é apenas uma das versões. A partir de então é angústia de aniquilamento” (RUDGE, 2005).
Diante desta nova perspectiva, o sonho de angústia pode adquirir um significado novo, que é inclusive consonante com a visão médica do que ela define como pesadelo ou transtorno de angústia ligada ao sonho: “sonho carregado de ansiedade ou de medo intensos, acompanhado por lembrança detalhada de seu conteúdo, geralmente associado a ameaças à existência, à segurança ou à autoestima, tendendo a se repetir. Tipicamente comportam certo grau de hiperatividade neurovegetativa. Ao acordar o sujeito está bem orientado” (CID 10, 2003) (os grifos são meus). Sob a ótica psicanalítica, sonho de angústia talvez possa ser definido como aquele cujo conteúdo manifesto ou latente provoca o súbito despertar por uma crise de angústia, comumente associada a manifestações corporais. É no corpo que a angústia se manifesta, porque ela “aponta para algo que sinaliza a verdade do sujeito. Verdade que toma corpo, literalmente” (RODRIGUES, 2007).
Se é complexo teorizar sobre os sonhos, desafio maior é conceituar a angústia, já que ela “não pode ser, de modo algum, objeto de conceito. Entretanto, ao mesmo tempo, ela é o fundamento não conceitual de todos os conceitos” (IDEM). Jean Paul Sartre diz que “a angústia é um falso conceito, é um ponto de universalização do singular.” Diante deste desafio, Lacan faz no seminário da angústia a surpreendente afirmação de que “a verdade vem de Kierkegaard através da angústia” (LACAN, 1963). Sören Kierkegaard (1813-1855), teólogo e filósofo dinamarquês, é considerado “o pai do existencialismo” e publicou um livro intitulado “O conceito de angústia” (KIERKEGAARD, 1844), que é fonte de diversos comentários de Lacan em seu seminário sobre o tema. No tópico que tem o mesmo título do livro, é revelador observar que por várias vezes o autor se refere a sonhos, traçando íntima relação entre eles e a angústia: “A inocência é a ignorância … Neste estado existe calma e descanso; mas existe, ao mesmo tempo, outra coisa … Nada. Que efeito produz este nada? Este nada dá nascimento à angústia. Aí está o mistério profundo da vida: é ao mesmo tempo angústia. Sonhador, o espírito projeta sua própria realidade que é um átimo e a inocência vê sempre diante de si o nada” (IDEM). Noutro trecho o autor diz que “a angústia é determinação do espírito sonhador e, a tal respeito, ocupa lugar na Psicologia. A vigília estabelece diferença entre mim mesmo e o outro-em-mim, o sono deixa-a suspensa, o sonho traz a sugestão dela como um vago nada. A realidade espiritual aparece sempre como algo que tenta sua possibilidade, porém some assim que a desejamos captar” (IBIDEM). Mais à frente Kierkegaard diz que “se formos analisar caracteres dialéticos da angústia, acharemos a ambiguidade psicológica. A angústia é antipatia simpatizante e simpatia antipatizante” porque “… fugir à angústia não é possível porque a ama; porém, amá-la realmente, também não, pois foge dela” (IDEM). O autor conclui que “o surgimento da angústia condensa o fulcro de toda a questão. O ser humano é uma síntese de alma e corpo; mas esta se torna inimaginável se ambos os elementos não se fundirem num terceiro: o espírito. O espírito já está presente ainda que em estado de imediatidade, de sonho. Qual a relação do homem com o espírito? A relação é a angústia” (IBIDEM) (os grifos são meus). É surpreendente perceber nestes grifos não só a íntima relação entre vazio e angústia, mas também como podemos intuir a própria definição do sonho de angústia, onde a verdade do sujeito aparece como “algo que tenta sua possibilidade, porém some assim que a desejamos captar” e despertamos!
Umbigo e goela
Certamente não foi de forma ingênua que Freud escolheu a palavra umbigo para, na “Interpretação dos sonhos”, referir-se a um momento crucial do conteúdo manifesto dos sonhos. Derivada do latim umbilicus, ela significa “saliência em uma superfície” e é também usada como referência ao “elo biológico que liga o filho à mãe; indica relação de dependência entre uma vida e outra; ponto central de algo” (WIKIPEDIA, 2008). Ao referir-se ao “umbigo do sonho”, Freud magistralmente o define como “esse ponto onde o sonho é insondável, onde se interrompe o sentido ou toda a possibilidade de sentido” (FREUD, 1900). Para esse ponto ele escolheu uma palavra que se refere à fundamental relação entre mãe e filho, da qual todo ser humano leva no corpo uma cicatriz indelével.
Se o simbólico refere-se ao duplo sentido e o imaginário à produção de sentido, para Lacan esta ausência de sentido ou sua impossibilidade que caracteriza o umbigo do sonho recebe, no Seminário 11, a denominação de real (LACAN, 1964). “É nesse ponto de falha na malha constitutiva do sonho, correlato ao ponto em torno do qual constitui-se a fantasia fundamental do sujeito, que vamos ver nascer um novo saber que recoloca esse sujeito diante do real que o constitui” (LIMA, 2003). Assim, despertar durante um sonho de angústia é deparar-se com o insuportável que seu umbigo anuncia e recusar-se a enfrentar a verdade que o sujeito não está pronto para revelar sobre si mesmo. Sobre o dormir e o sonhar, Lacan fez três indicações que são valiosas para a nossa construção. Em “Une pratique de bavardage” (1977), define que “o inconsciente é muito exatamente a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos.” De fato, as fantasias e os devaneios da vigília expressam os mesmos desejos, conscientes ou não, que podem vir a surgir nos sonhos durante o sono. No Seminário 17, Lacan faz duas outras afirmações. A primeira é tão enigmática quanto seu próprio conteúdo: “o desejo de dormir é, de fato, o maior enigma” (LACAN, 1969-70), já que ele não se refere à necessidade de dormir e sim ao desejo de fazê-lo. Mas a terceira destas indicações que é particularmente valiosa para nosso tema, porque ao referir-se ao sonho de angústia, Lacan aponta com precisão que “… só despertamos para continuar sonhando” (IDEM) (o grifo é meu). O sujeito desperta durante um sonho de angústia para continuar dormindo em relação ao real e à verdade que o constitui, por não estar psiquicamente apto a revelá-la a si mesmo.
Neste sentido, a angústia no sonho tem o papel de evitar que o sujeito enfrente algo para o que não está preparado, o que nos permite fazer uma analogia com aquele desempenhado pelas pulsões de autoconservação em promover a necessária transição do princípio de prazer ao princípio de realidade, tal como Freud postulou em “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920). Permanecer indefinidamente sob o princípio de prazer pode ser ameaçador à vida biológica, sendo imperativo que ela se conserve sob a ação do princípio de realidade, imposto por intervenção de pulsões de autoconservação. No sonho, a angústia exerceria função de autoconservação psíquica, na medida em que o súbito “despertar” por ela causado evita que o sujeito se encontre com algo ameaçador e psiquicamente intolerável, sinalizado pelo umbigo do sonho. Esquematicamente seria:
Da mesma forma, não foi ingenuamente que Lacan selecionou a aterrorizante imagem da boca do crocodilo para referir-se ao insaciável desejo da mãe em relação ao filho, ao descrever o estádio do espelho e apontar a importância capital das operações de alienação e de separação na constituição do sujeito (LACAN, 1949). Neste fundamental trabalho, Lacan usa a imagem de uma estaca de pau para representar a Lei do Pai, única forma de impedir que a bocarra do desejo materno se feche irremediavelmente sobre o filho e o devore goela abaixo, impossibilitando ou em muito dificultando que ele venha a se constituir como sujeito desejante. O espectro clínico deste devoramento subjetivo é amplo, indo desde dificuldades sexuais diversas ou insegurança neurótica na tomada de decisões até mesmo a psicose.
O que ocupa o centro deste embate pela sobrevivência psíquica é o desejo, que bascula para o lado da mãe na operação de alienação, fase indispensável na construção de um patrimônio afetivo e na libidinização da criança, mas que deve ceder espaço para que o desejo do sujeito se constitua por força da operação de separação. Ainda alienada, a criança encontra na mãe a completude, pois essa tudo supre e não permite que a falta se instale: a criança experimenta a “falta da falta”, uma das formas como Lacan define a angústia em seu seminário sobre o tema (LACAN, 1963). Assim, o sujeito ali-é-nada. É oportuno lembrar-nos de Kierkegaard, quando ele diz que “este nada dá nascimento à angústia” (KIERKEGAARD, 1844). Caso a operação de separação seja eficaz, o desejo bascula para o lado do sujeito que está em formação, que passa a vivenciar a falta e de “nada” transita à sua posição de “não-todo”. Esquematicamente, indicaríamos assim:
Neste ponto, aplicando novamente o já mencionado postulado freudiano de que o artista antecipa o psicanalista, recorro a William Shakespeare no famoso monólogo de Hamlet (~1600) para ilustrar as consequências da operação de separação incompleta na vida do sujeito e reintroduzir neste contexto a questão do sonho de angústia:
“Ser ou não ser, eis a questão.
O que é mais nobre? Sofrer na alma as flechas da fortuna ultrajante
ou pegar em armas contra um mar de dores pondo-lhes um fim?
Morrer, dormir, nada mais; e pelo sono pôr ponto final aos males do coração…
Morrer! Dormir; dormir, sonhar talvez: mas aqui está o ponto de interrogação;
porque no sono da morte, que sonhos podem assaltar-nos
uma vez fora da con-fusão da vida? (a escansão, obviamente, é minha)
É isso que nos obriga a refletir, é esse respeito que nos faz suportar por tanto tempo uma vida de agruras.
… Quem tais fardos suportaria, preferindo gemer e suar sob uma vida fatigante,
a não pelo medo de algo depois da morte, país desconhecido de cujos campos
nenhum viajante retornou …
Assim a consciência nos faz a todos covardes e as cores nascentes da resolução
empalidecem frente ao frouxo clarão do pensamento.
E os planos de grande alcance e atualidade nesta perspectiva mudam de sentido
e saem do campo da ação” (BRADLEY, 1904 – os grifos são meus).
Seria pretensioso tentar esgotar as inúmeras formas pelas quais este célebre texto pode ser abordado. Sob o prisma do tema deste trabalho – sonhos, angústia e alienação –, entretanto, este monólogo retrata de forma magistral a vacilação do sujeito diante de sua possibilidade de escolher entre permanecer no sofrimento neurótico, “preferindo gemer e suar sob uma vida fatigante”, ou se conduzir pelas “cores nascentes da resolução” e vir a concretizar seus “planos de grande alcance e atualidade”. Ser ou não ser sujeito, eis a questão! E o que impede que este sujeito vacilante escolha deixar todo seu sofrimento? O “medo de algo depois da morte, um país desconhecido… que nos baralha a vontade e nos faz suportar os males que temos…”. Este é o ponto de convergência com o tema do presente trabalho, se entendermos aqui a palavra morte como o sono e sua consequente entrada no reino dos sonhos. Esta proximidade entre o dormir e a morte é literalmente apontada pelo próprio texto de forma insistente, mas diante da possibilidade de sonhar, surge “o ponto de interrogação”: “que sonhos podem assaltar-nos fora da confusão da vida?” É extremamente ameaçador para este sujeito vacilante se descobrir sem as travas que a con-fusão com o Outro impõem ao seu desejo, limitando e empobrecendo a sua vida. Diante do medo de adentrar no “país desconhecido” dos sonhos e correr o risco de defrontar-se com sua própria verdade e seu desejo, o sujeito desperta de um sonho de angústia e retorna à consciência que “nos faz a todos covardes e as cores nascentes de resolução empalidecem frente ao frouxo clarão do pensamento”. Há ainda um detalhe particularmente valioso no texto que ilustra bem a concepção do sonho de angústia aqui apresentada: diante deste medo os desejos “mudam de sentido e saem do reino da ação”. Durante um sonho de angústia, o vetor dos conteúdos manifestos e/ou latentes aponta na direção da separação, até o ponto em que ele se depara com o umbigo do sonho e ocorre uma inversão de sentido e o retorno à posição de alienação. Mas retornar a esta posição significa aceitar o “nada” ao qual o sujeito é reduzido na alienação, o que equivale a um angustiante risco iminente de aniquilamento subjetivo: neste momento ele “desperta” e sai do “reino da ação”. É revelador observar que o monólogo se inicia com a palavra ser e termina com a palavra ação. O ser sujeito implica em habitar o campo da ação, o que só é possível se a separação do Outro se completa. Assim, para que se constitua como ser desejante, a vida humana impõe ao sujeito um imperativo categórico: sê-para-ação!
Podemos, portanto, esquematicamente sintetizar os destinos do sonho assim:
Assim, quando a separação do Outro se concluiu e existe realmente UM sujeito, o destino do sonho é, tal como Freud determinou, a realização do desejo inconsciente. A separação pode não ter sido completamente efetivada mas, diante do umbigo do sonho, o sonhador tolera psiquicamente permanecer dormindo, o que lhe dá a oportunidade de haver-se com o real e com a verdade que o constitui como sujeito. Se o sonhador porém, diante deste umbigo, “desperta” com uma crise de angústia, é porque ele experimenta a ameaça inconsciente do aniquilamento subjetivo que a inversão do vetor do sonho gera, ao apontar-lhe o “nada” que o retorno à alienação ao desejo do Outro implica. Usando a imagem criada por Lacan, o sonhador veria diante de si o horror da goela do crocodilo. Este terceiro destino é o que caracteriza, na presente construção, o sonho de angústia, o qual pode ser então esquematicamente representado da seguinte forma:
Logo, o conceito central desta construção é o de angústia de aniquilamento, tal como Freud definiu em sua concepção final sobre o tema, como já citado. É importante notar que a ameaça de aniquilamento será experimentada em pólos opostos em relação à dialética alienação-separação, já que antes de existir um sujeito ela será precipitada pela separação e após a constituição ao menos parcial da subjetividade, esta ameaça é vivida pelo risco iminente do retorno à alienação ao desejo do Outro. Esquematicamente seria:
A respeito do “despertar” súbito típico de um sonho de angústia, é interessante notar que na “Interpretação dos sonhos” Freud sentenciou que “a função do sonho é a de guardião do sono” (FREUD, 1900). Um ano mais tarde, em trabalho intitulado “Sobre os sonhos”, ele faz a significativa ressalva de que “essa visão não se contradiz pelo fato de haver casos marginais em que o sonho – como ocorre nos sonhos de angústia – já não pode cumprir sua função de impedir a interrupção do sono e assume, em vez disso, a outra função de fazê-lo cessar prontamente… quando as causas da perturbação lhe parecem graves, de um tipo que não pode enfrentar sozinho” (FREUD, 1901 – os grifos são meus). Esta passagem é consonante com a construção aqui defendida sobre sonhos de angústia e é útil para enfatizar algo fundamental: que a constituição plena do sujeito é um processo longo que se inicia nas operações de alienação e separação e se prolonga por extenso caminho até sua conclusão. Análise pessoal pode ser indispensável para que o percurso chegue ao fim, propiciando um verdadeiro despertar.
Desejo e des-ejo
É curioso e revelador observar que, se dividida ao meio, a palavra desejo passa a ser formada por dois elementos que, isoladamente, apontam para sua total anulação: o prefixo des que indica ação contrária ou negação (como em desfazer, desatar) e o sufixo ejo que se presta a reduzir ou diminuir (como em vilarejo, lugarejo) (AURÉLIO, 1986). Por outro lado, é pertinente lembrar que ao se referir à angústia, Kierkegaard a definiu como “antipatia simpatizante e simpatia antipatizante” (KIERKEGAARD, 1844), figura gramatical denominada oxímoro, “que consiste em reunir palavras que se contradizem; paradoxismo (como em ‘silêncio eloquente’)” (AURÉLIO, 1986). A construção sobre o sonho de angústia aqui defendida nos sugere que o súbito “despertar” que o caracteriza é precipitado pela abdicação inconsciente do “sujeito” ao próprio desejo, na medida em que seu vetor retorna à direção oposta e aponta para a alienação ao desejo do Outro, que é vivenciada durante o sono como uma angustiante ameaça de aniquilamento subjetivo. Assim, poderíamos dizer que no sonho de angústia o desejo do “sujeito” é um oxímoro: desejo alienante. Ou, mais precisamente, talvez ele possa ser definido como um des-ejo.
Sono e desrealização
Chegamos ao cerne da proposta deste trabalho. Para explicitá-lo é necessário que lembremos o conceito psiquiátrico das vivências de desrealização e despersonalização: “transtorno dissociativo (palavras-chave: histérico, conversivo, neurótico) caracterizado por sensação de estranheza ou desligamento em relação aos pensamentos, ao corpo e mundo real, que são percebidos como irreais, longínquos ou ‘robotizados’, sem prejuízo das faculdades sensoriais. Pode ser acompanhado de crises de ansiedade e outros sintomas” (CID 10, 2003 – os grifos são meus). Por tudo o que foi exposto até aqui, não é difícil perceber a semelhança entre esta descrição de uma vivência dissociativa na vigília e a ameaçadora experiência de um sonho de angústia. Não parece absurdo conjecturar que o mesmo sofrimento psíquico responsável pela desrealização experimentada na vigília possa ser reeditado durante o sono, se aceitarmos a premissa aqui defendida de que o sonho de angústia representa uma vivência de alienação, acompanhada de sentimentos intensos de ameaça de aniquilamento subjetivo. Para dar sustentação a esta construção teórica, recorro novamente a Freud e volto a chamar a atenção para o aspecto de capital importância que nos permite defender esta tese: “é excessivamente fácil esquecer que o sonho é um pensamento como outro qualquer” (FREUD, 1923 – o grifo é meu). É digno de nota que este valioso alerta de Freud foi feito 23 anos após ele ter afirmado a mesma ideia na “Interpretação dos sonhos”, o que indica claramente sua convicção sobre ela. A mesma motivação inconsciente que gera a desrealização na vigília está, a nosso ver, na base do que é vivenciado durante um sonho de angústia, o que significa dizer que ambas as experiências refletem um mesmo estado psíquico e se equivalem clinicamente.
Conclusão
O sonho de angústia está, para o sujeito, a serviço do “não saber” sobre a sua verdade. A angústia é da ordem do indizível: ela não fala, ela cala. E mesmo durante o sono ela cumpre esta função: ela cala o discurso do sujeito do inconsciente que encontra no sonho sua via privilegiada, forçando súbito “despertar” para a realidade, que mantém o sujeito dormindo para o real que o constitui. Indizível, a angústia deve remontar sua origem a uma época anterior à capacidade de simbolização do sujeito, podendo apenas ser presentificada pela vivência corporal. Pela intensidade desta vivência experimentada durante o sonho de angústia e pelo caráter primitivo de suas manifestações – taquicardia, dispnéia, sudorese –, ela aponta para a sensação iminente de aniquilamento, síntese da teoria freudiana sobre a angústia. Se para o bebê separação é ameaça de aniquilamento, para o sujeito a alienação ao desejo do Outro, que pode traduzir-se pela vivência de desrealização, é que deflagra estas intensas manifestações. O sonho de angústia é, sob esta perspectiva, uma vivência de desrealização durante o sono.
Concluindo, retorno à genial proposição freudiana de que “sonho é a realização de um desejo inconsciente” (FREUD, 1900). Diante do que foi exposto neste trabalho, talvez possamos propor as seguintes formulações sobre o sonho de angústia:
O sonho de angústia é a realização de um des-ejo.
O sonho de angústia realiza um desejo alienante.
O sonho de angústia é vivência de desrealização.
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Sobre o Autor:
Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Médico. Psicanalista. Sócio e membro da atual diretoria do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1 Trabalho apresentado na XXVI Jornada do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, em outubro de 2008.
Fonte: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952009000200006